"Meu irmão era operador. Eu gostava de ir observar, sempre
fui curioso. E meu irmão dizia "olha, o Duca não gosta de ninguém aqui!
Desce, desce, desce!". Quando foi um dia, Seu Duca vinha na escadaria e
disse “ei, Chiquinho, não faz isso não. Deixe ele aí, que eu gosto de gente
curioso assim. Quem sabe um dia ele não vai nos servir, pro cine argus”. O depoimento é de Ademar
dos Santos, técnico do Cine Argus por décadas, que ainda se emociona ao falar
do antigo cinema de rua de Castanhal e de Seu Duca, patrão e amigo de longo
tempo.
Não é a toa que Seu Duca gostava de gente curiosa. Especialmente, de gente
curiosa pelo cinema. Nascido em 1918, o garotinho Manoel (Duca), por volta
de 6 anos, admirava o Cine
Teatro Kosmos, que ficava em frente a casa de um farmacêutico com o qual morou
durante um período de dificuldades financeiras de sua família, na cidade
de Bragança. O que mais o encantava era o trabalho de preparação artesanal
dos cartazes (que o inspiraria a fazer o mesmo com o Cine Argus) e o
funcionamento da máquina de projeção. "Mas,
não é que eu gostasse só de ver o filme na tela, o meu encanto era ver a
máquina funcionando (...) Eu queria ver porque é que as pessoas andavam. Saber
o porquê. Porque ele colocou a fita e tal, movimentava, aparecia lá na tela.
Mas, eu olhava pra máquina e não via nada, só via a fita parada (...) E eu
perguntava pro operador 'o que é que faz andar, hein?", afirma Seu
Duca em entrevista concedida ao filho Chico Carneiro em 1977. Tanta curiosidade
levou Seu Duca ao sonho de ter um cinema, o que conseguiu realizar em
Castanhal, por volta de seus vinte e poucos anos.
Ademar dos Santos nos recebeu no ano de 2014, em meio à sua imensa coleção
de vinis, em sua oficina, onde utiliza a intimidade de muitos anos com os
equipamentos de projeção do Cine Argus para fazer consertos de
eletrodomésticos. Do cinema onde trabalhou, guarda muita saudade. Afirma nunca
ter pisado nas salas multiplex do Moviecom, no Yamada Plaza Castanhal. "Se eu for lá, eu sei que a
lágrima vai descer, porque eu sinto saudade disso (...) dói você ta perto
daquele equipamento que você lidava com ele desde criança, conhecer com a palma
da sua mão... dói pra caramba", diz.
Ademar
dos Santos, em Memórias do
Cine Argus (2014)
Nosso entrevistado relatou que seu primeiro serviço no Cine Argus foi como
ajudante em uma pintura do prédio. O rapaz curioso foi em seguida contratado
como faxineiro. De faxineiro,
passou para revisador. De revisador para operador. E de operador se tornou o
técnico da empresa, quando tinha entre 19 e 20 anos.
Das várias histórias curiosas contadas na entrevista de Ademar dos Santos há
uma que diz respeito ao momento em que o Grupo Severiano Ribeiro deixou de
fazer a distribuição de filmes para os cinemas do interior do Pará, na segunda
metade dos anos 60. "Quando foi véspera de natal, seu Duca foi lá (em Belém), tava cortada a
programação do interior, dele e do meu primo em Capanema. Rapaz, nesse dia eu
vi esse homem chorar. Aí ele disse “Ademar, o que eu faço?” Era o dia de,
depois da projeção, sair a gratificação para cá um dos funcionários. Eu disse
“não, seu duca, não se perturbe não, que pra tudo tem um jeito, Deus dá um
jeito pra tudo", relembra Ademar. A solução para o problema não podia
ser mais criativa e contou com o improviso dos dois. Seu Duca pediu a Ademar
que tentasse montar um filme a partir de restos de película existentes no forro
do prédio, para salvar a renda do Natal.
"Naquele tempo, o público era um ou outro que entendia de cinema. Era
escolhido o público seleto para compreender", relata Ademar. "Então eu disse 'eu vou montar
um filme aqui, pra não ficar sem filme no natal'. Emendei um bocado de partes,
umas quatro partes. “E aí, que nome é?” (perguntou
Duca). “Ah, não tem nem nome
isso aí”. Eu pensei “ah, poe aí... Rua da Saudade (RISOS). Aí ele fez a placa e
disse “Rapaz, você tem uma cabeça...”. Aí começou. Eu ouvia o povo dizer
"rapaz, eu vou embora, que eu não sei que diabo de filme é esse!". Mas,
arranjou o dinheiro pra dar a gratificação de cada um e ainda sobrou o dinheiro
da passagem pra ele ir pra Recife no dia seguinte. Dia de natal ele viajou pra
Recife pra tentar a programação direto de Recife pra Castanhal. E
conseguiu", lembra Ademar.
Depois desse fato, Seu Duca estimulou a reaberta de diversos cinemas no
interior do estado do Pará, criando um circuito exibidor com mais de 30 salas
de cinema. Adquiriu equipamentos de vários cinemas do sudeste do Brasil, que
estavam fechando suas portas frente à concorrência com a televisão, para servir
às suas praças. Os anos 70, marcados pelos faroestes, foram um período áureo
para o recém criado circuito da Empresa Argus. O menino curioso que queria ter
um cinema agora tinha mais de 30. E o outro garoto curioso que gostava de
observar o projetor, se tornaria o técnico responsável por diversos projetores
dessas praças.