sábado, 30 de abril de 2016

Memórias do Cine Argus no Vercine

Enquanto o longa-metragem Cine Argus, o Cinema de Seu Duca passa por seus ajustes finais e entra na contagem regressiva para sua estreia, Memórias do Cine Argus, o curta que lhe deu origem, continua sua carreira em festivais.

Dessa vez, nosso curta-metragem foi selecionado para o Festival de Cinema Brasileiro da Baixada Fluminense - Vercine, a ser realizada na cidade de Duque de Caxias - RJ em junho deste ano.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Corte e (des)montagem

Mais uma crônica de Amílcar Carneiro, que comenta o importante trabalho de revisão de filmes, que no Cine Argus foi desenvolvido por funcionários como Sabá e Ademar. A tesoura é o grande símbolo de uma época em que o cinema prescindia dos esforços e habilidades de revisores de película para garantir a projeção de filmes danificados. Do apogeu ao declínio da atividade nos anos 80-90, com o fechamento em massa dos cinemas de rua, Amílcar relata com maestria mais essa curiosidade. 

Corte e (des)montagem

Já dizia François Truffaut: a única arte eminentemente cinematográfica é o corte e montagem. E explica: a fotografia já existia, e a interpretação também, que veio do teatro. E é a pura verdade. No principio o cinema era apenas o teatro filmado. Depois da aprimoração da técnica, ou recurso, do corte e montagem é que o cinema realmente ganhou personalidade, estilo próprio. Corte e montagem é uma linguagem universal, tal como as notas musicais.
Mas o corte da película não seria privilégio nem obrigação só dos montadores de um copião em laboratório. A tesoura era presença obrigatória onde quer que estivesse uma película de celulóide a ser exibida. Se a fita quebrava, tinha que ser emendada; e para isso tinha que ser cortada de maneira que não fosse alterada a seqüência dos fotogramas para não comprometer, também, o enquadramento na tela. Independente de a fita quebrar ou não, a cada exibição se fazia necessária uma revisão na mesma; caso houvesse algum risco ou estrago que comprometesse o fotograma, este teria que ser retirado. Lá entrava de novo a tesoura e a cola.

Foto: Chico Carneiro

Todo operador de cinema tinha também que ser revisor. Quando a fita era nova não havia problema. Mas nem sempre era assim. Principalmente no interior, onde as fitas chegavam já com bastante tempo de exibições quase que diárias, às vezes anos. Isso mesmo, anos. Até meados dos anos 80, todo filme a ser exibido em território nacional recebia um certificado de censura da policia federal com validade para cinco anos. Depois disso, se houvesse interesse da distribuidora em renovar a censura, isso era feito por mais cinco anos; caso contrário, as cópias eram recolhidas e incineradas.
As fitas muito rodadas chegavam por aqui em estado lamentável de conservação. Vários fatores contribuíam para isso, tais como: exibições constantes sem revisão, mau trato no enrolamento das partes, exibições em projetores velhos e mal conservados e finalmente o próprio descaso da maioria dos projecionistas, também chamados de operadores.
Um bom operador era também um bom revisor. Alguns faziam verdadeiros milagres para exibir, sem problemas, cópias completamente dilaceradas pelo uso. Dois dos melhores operadores que conheci foram o Odílio e o Ademar. Ambos escolados pelo papai, que desenvolveu técnicas pessoais de aproveitamento de fitas estragadas.
Toda companhia distribuidora de filmes tinha uma sala de revisão com, no mínimo, quatro revisores. As grandes companhias americanas levavam tão a sério a revisão, que tinham até um sistema de contagem de fotogramas. Era uma maneira de forçar o exibidor a tratar bem da fita. O filme saia para exibição em uma praça com tantos fotogramas em cada parte. Havia uma certa tolerância de perda; a partir daí era cobrado do exibidor determinado valor por cada fotograma perdido.

Sabá e os projetores do Cine Argus

Conheci as filiais de distribuidoras norte americanas em Recife, no ano de 1982. Naquele tempo, ainda, as salas de revisão ocupavam o maior espaço físico das distribuidoras. Algumas delas com até oito revisores trabalhando ininterruptamente nos dois expedientes. Os revisores emitiam o boletim de revisão, que era um documento tão importante quanto obrigatório a acompanhar os filmes.
Fato interessante na história de emenda de filmes é que era obrigatório o uso de uma cola especial à base de acetona; e terminantemente proibido o uso de fita durex, procedimento muito usado por alguns operadores. Se fosse encontrado algum vestígio de durex em uma cópia de filme, o exibidor responsável pela falcatrua estaria fatalmente na lista negra dos distribuidores.
Hoje, as fitas são emendadas com uma fita durex especial. A própria película já não aceita mais as colas para filmes. Parece que os pregadores de durex, como eram chamados os operadores que não sabiam usar a cola, estavam certos.
Mas entre cola e durex, a tesoura continuava indispensável junto ao celulóide. Ficou até famosa no tempo da ditadura quando os filmes eram censurados e mutilados com cortes absurdos. Nos certificados de censura emitidos pela Polícia federal, vinham detalhadas as cenas a serem cortadas e até o motivos dos cortes. Lembro de alguns em filmes nacionais: “cortar a cena em que o personagem principal atravessa uma rua e ao fundo aparece uma favela”. Motivo: a mesma deturpa a realidade nacional. “Cortar a cena da praça em que aparece um mendigo”. Motivo: o mendigo não tem nada a ver com a história do filme.

Sabá operando os projetores do Cine Argus

Nos anos oitenta, quando surgiram os filmes de sexo explícito, algumas distribuidoras de São Paulo, todas ditas independentes (termo usado para distinguir distribuidoras particulares das estrangeiras) usaram e abusaram da tesoura, fazendo trambiques com partes de filmes. Eles pegavam seqüências mais ousadas de sexo em uma fita e encaixavam em outras. Às vezes juntavam uma série de seqüências, inventavam um título e estava pronto um novo filme. Eu, como exibidor, paguei o pato várias vezes: simplesmente o público pensava que o dono do cinema é que era o responsável pela prática desonesta.
Paralelo a isso, as grandes distribuidoras norte americanas praticavam, cada vez mais, o sistema de lançamento nacional. A ordem era faturar mais em menos tempo, com o aumento do número de cópias para exibição. Assim os cinemas recebiam cópias sempre novas, ficando mais fácil a tarefa de revisão de fitas. Com a diminuição de salas de exibição, o final dos anos oitenta e inicio dos noventa marcou o fechamento em massa dos cinemas do interior as cópias passaram a ter menor rotatividade, diminuindo significativamente a necessidade de revisão, e por conseguinte o número de revisores nas empresas distribuidoras. Houve uma grande crise de desemprego na categoria. Empresas que mantinham até oito revisores em seu quadro passaram a precisar de apenas um.  Em algumas delas, funcionários de outro setor passaram a acumular também a tarefa de revisor. Em geral cartazistas ou remessistas ficavam com essa tarefa. Prática muito comum entre as distribuidoras foi também a de unirem em um só espaço o serviço de todas. Dessa maneira, apenas um funcionário de cada setor servia a mais de uma empresa diminuindo custos. Uniram-se Columbia, Fox e Warner em um só escritório, mantendo apenas um revisor para as três, que em épocas anteriores mantinham, cada uma, entre quatro e oito revisores. A UIP, que já agregava quatro gigantes da cinematografia: Metro, Universal, United e Paramount, passou a manter apenas um gerente utilizando o espaço físico de uma independente, a Aquárius, com apenas um funcionário para as tarefas de revisão, embalagem e remessa de filmes.

O sistema de lançamento nacional – alguns casos com mais de cem cópias em exibição simultânea – trouxe um novo problema para as distribuidoras: a falta de espaço para guarda das mesmas. Depois de exibidas, as cópias encalham; por serem volumosas fica cada vez mais difícil o armazenamento. As filiais das distribuidoras receberam ordem para se livrarem das cópias que já não tem mais onde serem exibidas mas não, antes, sem um corte drástico. Um corte para desmontagem. Os rolos são cortados ao meio, como pizzas, e jogados ao lixo. Dezenas e até centenas de cópias de um mesmo filme são destruídas atualmente por este processo. Para partir o rolo ao meio, se faz necessário uma ferramenta bem mais forte que a tesoura. É a machadinha. Criou-se então uma nova função na cinematografia: cortador de fita. Mas não se pense que houve geração de novos empregos. O cortador é o próprio revisor, que na falta do que fazer com a tesoura, usa agora o machado.

Por Amílcar Carneiro

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Histórias do Leitor

Volta e outra um leitor ou leitora (seja do blog, seja do facebook) entra em contato contando uma história interessante que vivenciou no Cine Argus e de alguma forma marcou sua vida. São as coisas mais diversas, interessantes e inusitadas possíveis: romances, micos, fatos históricos, engraçados, traquinagens... Algumas dessas pessoas foram entrevistadas e compartilham essas histórias em nosso documentário. Mas, muitas histórias não estão gravadas e não serão, portanto, contadas no filme. A lista de potenciais entrevistados/as era imensa e não cabia no mesmo.

Por isso, aproveitando o prestígio ao nosso blog e à página do filme no facebook, e com o intuito de garantir o registro do máximo de memórias possíveis sobre o Cine Argus, estamos criando um espaço semanal no blog/facebook chamado "Minha história com o Cine Argus". Leitores e leitoras interessados poderão enviar suas histórias, preferencialmente com alguma foto, para o email edivaldo.cinema@gmail.com. Sua história pode ser publicada e assim você estará contribuindo para o resgaste das memórias de nosso querido cinema. E se sua história for publicada, você ainda ganha um dvd do filme.

Mande sua história pra gente! Vamos adorar publicá-la! E com certeza muita gente vai curtir conhecê-la!


Fotos: Chico Carneiro.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

As Memórias de Pedro

Pedro Carneiro, o segundo filho de Duca e Nila, tem uma participação modesta no curta-metragem Memórias do Cine Argus. No curta, ele aparece em falas breves sobre os auto-falantes do Argus e sobre a garotada que não tinha dinheiro para comprar o ingresso, mas ia pra frente do cinema na expectativa de conseguir entrar. Contudo, em Cine Argus, o Cinema de Seu Duca, que será lançada em breve, sua participação será bem maior. 

Pedro Carneiro em Memórias do Cine Argus (2014)

O depoimento de Pedro é uma imensa colcha de retalhos, costurada por meio de diversas lembranças a respeito do cinema, envolvendo os assuntos mais variados, como o início da amizade do pai com Paulo Cavalcante (que chegou em Castanhal em 1938 com um projetor Devry portártil e iniciou o Cine Argus em parceria com Seu Duca, nos fundos de um armazém), os trabalhos artesanais de produção das placas dos filmes, os bailes de carnaval realizados no salão do Argus, os seriados, as sessões promocionais nas quais “senhoras e senhoritas” não pagavam, a expansão do circuito da Empresa de Cinemas Argus Ltda, o princípio de incêndio que forçou a família a não morar mais no prédio do cinema... Ouvir Pedro Carneiro é fazer um passeio por vários acontecimentos do Argus. Alguns sem grande aprofundamento (a memória é traída pelo tempo), mas certamente todos dignos de nota. Várias dessas histórias serão recuperadas em Cine Argus, o Cinema de Seu Duca, nosso documentário  que será lançado em breve.

Com esta post sobre Pedro Carneiro, encerramos a apresentação dos 15 entrevistados do curta Memórias do Cine Argus. Em próximas posts, apresentaremos novos entrevistados que se somam a estes 15 para contar suas memórias no novo longa. Aguardem.

terça-feira, 12 de abril de 2016

Cine Argus, o Cinema de Seu Duca passa por Exibição-Teste

Na noite do dia 09 de abril de 2016, na casa de Amílcar Queiros Carneiro, nosso documentário de longa metragem sobre o Cine Argus foi exibido pela primeira vez, em versão ainda não definitiva, para uma pequena platéia, formada por membros da família Carneiro e outros convidados. O objetivo foi avaliar a recepção do público e ouvir críticas, a fim de preparar a versão final do filme. Além do produtor do filme Amílcar Carneiro, estiveram presentes o produtor e diretor Edivaldo Moura e o historiador do projeto cinematográfico Rafael Santos.

Superando as expectativas, houve excelente receptividade ao filme, que foi apresentado com um novo nome: Cine Argus, o Cinema de Seu Duca. Resultado de um projeto vencedor do IV Prêmio PROEX de Arte e Cultura, da UFPA, o longa é derivado do curta-metragem Memórias do Cine Argus. Mas, ficou bem diferente do curta (à exceção do prólogo e do epílogo, que permaneceram quase que inalterados) e ganhou personalidade própria. Não houve comparação entre o longa e o curta, mas os comentários do público presente apontaram que são filmes diferentes, cada qual com suas qualidades.

É certo que as comparações e preferências existirão, mas o receio que havia sobre o longa ficar cansativo e virar uma repetição estendida do que o curta já falava, parece não existir mais. É possível que alguns prefiram o curta, mais sintético na apresentação da história do Argus. E que outros gostem mais do longa, que inicia contando as origens do cinema de Castanhal desde o encontro de Seu Duca e Paulo Cavalcante no armazém de Seu Lins e Seu Anastácio, nos fundos dos quais o Cine Argus projetou seus primeiro filme, e aborda assuntos inéditos no curta e desenvolve outros pelos quais o Memórias dava rápidas “pinceladas”. Mas, o certo é que são dois filmes diferentes, embora compartilhem alguns trechos comuns.

Cine Argus, o Cinema de Seu Duca ficou com 98 minutos, tempo que deve sofrer pequenas alterações após a efetuação dos ajustes a partir das críticas do público presente. Em breve, serão feitas exibições públicas do filme em Castanhal. Como diria o pintor de cartazes e locutor de nosso inesquecível cinema: “Departamento de Publicidade do Cine Argus. Não percam! Em breve, neste cinema, o filme Cine Argus, o Cinema de Seu Duca!



domingo, 10 de abril de 2016

Coisas de Última Hora

Manter um cinema funcionando no interior do estado nunca foi tarefa fácil. Quem acompanhou a programação de filmes do Cine Argus e de outros cinemas pertencentes ao circuito da Empresa Argus Ltda, não tem ideia das peripécias que Seu Duca fazia para garantir a exibição das obras cinematográficas em suas salas.

Na crônica abaixo, de Amílcar Carneiro, publicada originalmente em 2001, o filho de Seu Duca e exibidor do Cine Argus nos treze anos finais de sua existência relata as "coisas de última hora" que costumavam ser feitas para garantir a programação. Dentre as histórias, está a exibição simultânea do filme A Vida de Cristo simultaneamente nas cidades de Castanhal e Santa Izabel, com apenas uma cópia do filme, fazendo o revezamento das partes do filme. Uma das várias similaridades entre o Cine Paradiso e o Cine Argus. Esta história, inclusive, será contada no filme Cine Argus, o Cinema de Seu Duca, documentário de longa-metragem que será exibido em breve.

Coisas de Última Hora

Meu pai era pessoa muito organizada, que gostava das coisas na hora certa e em seus devidos lugares, desde o local das escovas de dente e de cada um a mesa, até o rígido horário das refeições diárias. Por isso, era de se admirar, e muito, de como ele gostava de arriscar e improvisar coisas de última hora em assuntos muito sérios como, por exemplo, marcar estréia de filmes sem que o mesmo estivesse “em casa”, isto é,  dependendo ainda de chegar de algum lugar e deixando, nele mesmo, papai, uma expectativa desgastante. Ao longo de vários anos, acompanhei com bastante frequência muitos episódios dignos de deixar qualquer um com os nervos em frangalhos.

Na época em que Castanhal dispunha apenas da energia fornecida pela prefeitura, ligada às 18 horas e encerrada às 23 horas, havia sempre no Cine Argus as sessões de fim de semana, com dois filmes na programação e que terminavam por volta das 23 horas. A partir das 22: 30 – e dependendo do tamanho do rolo do filme que ainda faltava rodar – começava o drama: será que vai dar tempo? Será que a luz vai apagar antes? Por várias vezes me lembro de Ter ido até a usina de luz, de bicicleta, pedir ao funcionário encarregado para retardar um pouco o desligamento do motor, o que eles sempre atendiam com prazer sabendo que era para o cinema (claro que eu sempre levava uma gorjeta para o plantonista da usina).

Estréia de filme que ainda ia chegar na cidade, perdi até a conta, tantas foram. Filme com previsão de chegada em Belém às 18:30, estreando em Castanhal às 20 horas. Haja coração e o pior era quando, vez por outra, não chegava. Aí o drama era para quem estava em Belém aguardando, e para quem estava em Castanhal, quando a situação era pior, já que tinha que explicar ao público o motivo do atraso. O público, obviamente, não entendia. Como era possível anunciar um filme que ainda não havia chegado?

Certa vez, numa sexta-feira santa, foi exibido o filme “A Vida de Cristo” simultaneamente em Castanhal e Santa Isabel, cidades distantes 30 km uma da outra, com uma só cópia da fita, dividida em duas partes. A sessão começou em castanhal às 20 horas. Terminado a primeira parte, inicia a segunda parte em Castanhal, enquanto meu irmão Chico Mou leva a primeira parte para Santa Izabel, de carro. Volta a Castanhal para buscar a segunda parte da fita. Leva esta parte para Santa Izabel e traz a primeira, para iniciar a segunda sessão de Castanhal. Volta a Santa Isabel para buscar a segunda parte, e assim por diante. Felizmente deu tudo certo, com os dois cinemas lotados, principalmente o de Castanhal. Mas, bastaria um pneu furar para quebrar todo o esquema e gerar um possível quebra-quebra nos cinemas.

Em um certo dia de 5 de setembro de 1979, uma segunda-feira, eu ia chegando no Cine Argus e logo papai me deu a chave do carro, com a seguinte ordem: vai lá em Bacabal-Ma fazer procuração do filme “O Exorcista II” e leva para Imperatriz, sem falta, que ele estréia lá amanhã. Eis o dinheiro da viagem, entra em Capanema e apanha algum funcionário do Waldir para facilitar a busca do filme (Bacabal fica a 700 kms de Castanhal, era praça controlada pelo Waldir e o filme tanto podia estar lá como podia estar em outra praça adjacente como Santa Inês, Codó, Pedreiras, Lago da Pedra ou Peritoró).

Fomos eu e Tizeca, que na época vivia encostado pelo Argus, fazendo serviços de mecânica e de motorista. Entramos em Capanema e levamos o próprio Waldir. A ponte sobre o rio Gurupi havia tido problemas e a travessia estava sendo feita por balsa, o que retardou muito a viagem, já que chegamos em Bacabal depois da meia noite. O filme estava para Codó e só retornaria de madrugada. Na manhã de terça-feira recebemos o filme e seguimos para Imperatriz pela estrada que liga Santa Inês a Açailândia, na época ainda em construção, com piçarra e em condições precaríssimas. Chegamos em Imperatriz às 19 horas e o movimento em frente ao cine Marabá já era grande e a estréia foi um sucesso. De volta a Castanhal no outro dia, fomos recebidos pelo papai com a seguinte frase: “abasteçam e sigam para Tomé Açu levando estes dois filmes, a estréia é hoje e parece que a balsa de Bujaru só funciona até as sete da noite.” Emendamos para Tomé Açu onde a cena de Imperatriz se repetiu, ou seja, uma multidão em frente ao cinema aguardando a chegada do filme.

Quando tudo dava certo, era muito bom, gratificante, um verdadeiro final feliz. Mas nem sempre era assim, e quando dava errado as conseqüências eram desastrosas, tanto pela reação do público, que se considerava enganado, como para nós, os exibidores que, além de amargar prejuízos, ainda passávamos, realmente, por enganadores. Mas nem os trágicos desfechos serviam de lição, pois logo vinha outra emergência para ser resolvida de última hora. Tinha-se a impressão, por vezes, que o papai procurava fazer por onde se envolver nesses episódios mirabolantes e estapafúrdios.

Noutra vez, às 16 horas de um domingo, papai me mandou em São Miguel do Guamá buscar uma lente projetora que lá estava sobrando e que ele iria levá-la, no mesmo dia, para Icoaraci, a fim de instalá-la no Cine Ipiranga. O público de Icoaraci estava prestigiando o cinema da Vila e merecia uma atenção melhor quanto a qualidade da projeção, o que era uma preocupação permanente dele. Mas eu não poderia retornar de São Miguel antes das 18 horas e o papai, na melhor das hipóteses, teria que sair de Castanhal antes das 19 horas, a fim de ter tempo para efetuar a troca da lente, já que a sessão começaria às vinte horas. Eu realmente consegui ir a São Miguel e voltar em tempo hábil, pois cheguei em Castanhal precisamente às 18:10, com tempo de sobra para a viagem a Icoaraci. Aconteceu que eu, sem ter pedido maiores detalhes da lente, acabei trazendo o equipamento errado. Quem bem conheceu o papai, pode imaginar o seu desabafo naquela hora...

Em Icoaraci, aliás, sobraram episódios de última hora. No inicio de 1973, um incêndio destruiu o prédio, ficando em pé apenas as paredes, e a reforma durou o ano inteiro. A reabertura ficou programada para o dia 23 de dezembro, um sábado. Eu e o Gilberto, meu irmão, fomos nos juntar aos demais funcionários que lá estavam trabalhando em ritmo acelerado. Klinger era o mestre de obras auxiliado pelo Zé Quedinha e Mescouto e o Zé Preto funcionando também como cozinheiro. Havia ainda um pedreiro e seu ajudante, de Icoaraci mesmo, que pavimentavam a calçada. Minha missão, com o Gilberto, era a montagem das cadeiras, cujo plano já tinha sido feito. Seriam três filas, uma central, com 6 cadeiras e duas laterais, com 4 cadeiras cada uma. Seriam ao todo 14 cadeiras em cada fila, separadas por dois corredores e nada mais havia a discutir em relação a isso. Começamos a montagem, cabendo a mim as filas de 6 cadeiras e ao Gilberto as de 4. No grupo de trabalho havia ainda o Baltazar que, de férias da Empresa São Luis, fazia a instalação elétrica e o Ademar fazendo a montagem do projetor cinematográfico.

Na véspera da inauguração, quando fomos colocar as cadeiras, já montadas, em suas posições, elas não davam certo. Por um erro de cálculo do papai, os corredores ficaram estreitíssimos, quase não sobrando espaço para circulação. Foi um Deus nos acuda, toda a mão de obra disponível foi usada para refazer todo o trabalho de remontagem das cadeiras. Viramos a noite toda e no dia seguinte, quando a bilheteria abriu, nós ainda estávamos improvisando a colocação das últimas filas. O público entrando e vendo a gente apertar os últimos parafusos.

Ainda durante todo o ano de 1974, como o cinema de Icoaraci não tinha gerente nem operador fixo, nós passamos boa parte do ano levando todo dia um operador e, às vezes, o próprio filme. Saíamos de Castanhal entre 17 e 18 horas para retornar depois da projeção. Muitas das vezes eu ia cedo para Belém cumprir os afazeres de praxe e de lá emendava para Icoaraci. De Castanhal seguia o operador Ademar, de ônibus. Isso diariamente, por mais de um ano. Ou seja, um prato cheio para as “ocorrências de última hora”.

Mas parece que, não contente com tanto improviso, certa vez (um domingo, para não fugir à regra) eu ia saindo de Castanhal com o Ademar e com o Tarabian levando, para ser exibido em Icoaraci, o filme “Os Saltimbancos Trapalhões”, a maior bilheteria da temporada. Papai, como sempre querendo agradar ao público que prestigiava o cinema, resolveu que nós levaríamos um retificador Phillips, para melhorar a projeção. A operação era simples, ao chegar lá, bastava desconectar os cabos do retificador que estava em funcionamento e conectar ao Phipllips e estaria tudo resolvido. E lá fomos nós com o tal retificador dentro de uma Variant. Para quem não sabe, um retificador Phillips é do tamanho de uma máquina de lavar roupa, mas o peso é equivalente ao de seis sacos de cimento, isso mesmo, cerca de 300kgs.

Chegamos cedo em Icoaraci, por volta das 4 da tarde. No cinema não havia ninguém para nos ajudar, tivemos que ir em busca de dois funcionários e começamos a retirar o mondrongo  do carro lá pelas 5 da tarde. Carregar um peso na horizontal até que não é muito difícil mas na vertical e ainda mais no sentido de baixo para cima é uma tarefa lenta e exaustiva. Pois o tal retificador tinha que ser levado para a cabine de projeção, pois ele precisa ficar ao lado do projetor. E a escada de acesso à cabine do cinema de Icoaraci possuía 16 degraus e era bastante íngreme, além de ser, também, muito estreita.. Só dava para trabalhar quatro pessoas de cada vez, duas por cima e duas por baixo. Eu me lembro que fiquei completamente molhado de suor e já sem forças quando alguém avisou que a multidão para comprar ingressos já era grande. Foi aí que me dei conta de que já eram 19 horas, a sessão começaria às 20h e nós ainda estávamos na metade da escadaria.

O cinema ficou superlotado e a sessão começou com atraso. Mas, por algum motivo que não deu pra descobrir na hora, o poderoso retificador Phillips simplesmente não funcionou e pegou fogo. Tivemos que religar o antigo equipamento, que felizmente deu conta do recado. Pior do que a frustração de ter tido tanto trabalho para nada foi ficar ouvindo o Ademar repetir: “eu já disse pro Seu Duca: não adianta fazer coisas de última hora”.

Mas as “coisas de última hora” continuariam. Pareceu mentira, mas uma vez eu e o Josias fomos à Imperatriz com a missão de sacar um dinheiro na Caixa Econômica, que fechava as 13 horas. Naquele tempo os serviços bancários eram demorados e papai precisava do dinheiro no outro dia. Saímos de Castanhal às 9 da manhã, o carro era um Passat novinho em folha. A estrada, felizmente, estava um tapete, recém asfaltada. Chegamos em Imperatriz faltando  cinco minutos para a Caixa fechar e deu tudo certo. Mas é de se perguntar: até que ponto valeria o risco se algo saísse errado? O certo é que, neste caso, valeu.

Eu sempre me dizia que, se um dia viesse a tomar conta da empresa, jamais faria por onde ter que me sacrificar ou a outras pessoas fazendo essas tais “coisas de última hora”, tão desgastante para todos os que participam, direta ou indiretamente. Mas não teve jeito, acabei fazendo pior. Parece que a atividade de exibição no interior é que levava a isso. Ou então seria mesmo a nossa índole?

No segundo semestre de 1982, eu arrendei o cinema de Redenção. O filme escolhido para a reinaguração foi “Os Trapalhões e o Rei do Futebol”. Eu já estava em Redenção na véspera da abertur, mas o filme ainda estava em Macapá. Só havia um jeito de fazer o filme chegar a tempo em Redenção: por via aérea. O filme chegaria em Belém por volta das seis da manhã, Mescouto o receberia e imediatamente o despacharia pela Votec para Conceição do Araguaia. O vôo era um pinga-pinga que só chegaria em Conceição do Araguaia por volta das 15 horas. Como as estradas estavam em condições precárias, eu fretaria um avião em Redenção, distante 100 quilômetros, para ir buscar o filme. Assim foi feito. O tempo de vôo era cerca de 20 minutos. O avião fretado era de garimpo e só tinha a cadeira do piloto. Eu fui sentado no chão e voltei sentado no filme.

A estréia foi um sucesso e a renda deu pra pagar, com sobras, as grandes despesas feitas. Era mais um cinema que reabria graças às inevitáveis manobras “de última hora”.   

Amílcar Carneiro em 03.02.2001.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Uma Cidade Parecida com os Faroestes

Quando o professor Adalberto de Moraes Filho (conhecido popularmente em Castanhal como professor Betinho) foi procurado pela produção do filme Memórias do Cine Argus, a intenção era ouvi-lo falar sobre as famosas sessões promocionais que, durante um determinado período da história do cinema de Seu Duca, ajudaram estudantes e movimentos religiosos a angariar recursos para a realização e participação de eventos. Mas, o que encontramos em seu riquíssimo e divertido depoimento foi bem mais que isso.

Professor Betinho em Memórias do Cine Argus (2014)

Uma dos entrevistados mais presentes no curta-metragem, professor Betinho falou sobre as influências dos filmes de faroeste no município. Segundo ele, as semelhanças de Castanhal com os cenários dos westerns exibidos no Cine Argus favoreceram a popularização desse gênero cinematográfico na cidade. “A gente tinha uma cidade muito parecida com aquilo, porque tinha uma estação ferroviária, tinha o trem, tinham os agricultores que traziam seus cavalos nos dias de feira e deixavam esses cavalos amarrados próximos de casa. Então, aquela estrutura daquele pau, com aquela madeira com a trava em que amarravam os cavalos perfilados, né, um do lado do outro, parecia os filmes de faroreste, parecia um saloon, né. Então, a gente tirava esses cavalos, ia cavalgar com eles, eu levei até umas quedas de cavalo por causa dessas brincadeiras", relembra aos risos.

Centro da cidade de Castanhal (1966)

Dentre outras recordações, Betinho relata que uma diversões da garotada de sua rua (ele morava na Barão do Rio Branco, próximo à Estação) era brincar de índio quando da chegada da Maria Fumaça. A mulecada se pintava e fantasiava de índio, correndo ao lado do trem e disparando suas flechas. As flechas do irmão de Betinho eram feitas com ponta de arte metálica de sombrinha. E espetava mesmo. Em uma dessas brincadeiras, uma flecha que o irmão almejou para cima acabou acertando a cabeça de uma das crianças, que precisou ser levado ao Posto de Saúde para tirar a flecha. "A sorte é que só pegou no couro cabeludo", relembra. 

Os westerns estavam entre os maiores sucesso de público, principalmente até a década de 70. Mas, o Cine Argus tinha uma programação bem diversificada, que englobava outras cinematografias além da americana, como foi o caso do cinema italiano (responsável pelos westerns spaghetti), do cinema japonês e do cinema francês, além é claro, dos filmes nacionais. Sobre o cinema japonês, Betinho recorda da beleza da fotografia dos filmes nipônicos exibidos nos dias de quinta-feira para a colônia japonesa do município. O professor também relata um período em que filmes franceses começaram a ser exibidos no Argus, popularizando estrelas européias como Alan Delon, Brigitte Bardeau e Charles Bronson.

Casos engraçados são relembrados aos montes pelo professor. Como as tentativas da garotada de enganar o Pati (porteiro do cinema) e furar a fila, e a bagunça que acontecia quando uma cena era pulada na projeção ou a fita quebrava.

Betinho relata que vai pouco ao cinema, alegando problemas técnicas na projeção dos cinemas existentes em Castanhal. Por conta disso, muitas vezes prefere ver os filmes em sua casa mesma, por conta das limitações das salas. Cinéfilo de carteirinha, recorda do capricho de Seu Duca com a qualidade técnica da projeção do Cine Argus. "Em Castanhal tinha projetores para 16mm, 35mm e 70mm. Quando ia assistir um filme do David Lynch, Seu Duca trocava as lentes, colocava as  lentes apropriadas e projetava na largura do próprio filme. Então, era uma qualidade técnica espantosa da projeção. E também o cinema do Seu Duca tinha um som bom, não era ruim o som. Quando precisava do som dolby, ele instalava as caixas laterais", recorda.

E, é claro, não podíamos deixar de falar das sessões promocionais. Betinho era um dos líderes do Grupo Focolares, da Igreja Católica. Quando o grupo precisava enviar alguns de seus membros para um evento fora da cidade ou promover seus próprios eventos, uma das alternativas para conseguir os recursos financeiros necessários era alugar um filme no Cine Argus. O grupo ficava responsável pela divulgação e venda dos ingressos e ficava com uma porcentagem da bilheteria. A mesma estratégia era utilizada por turmas de estudantes que queriam promover suas festas de formatura. Normalmente, esse tipo de exibição ocorria em dias de sexta-feira. Alguns clássicos do cinema foram exibidos nessas sessões, como foi o caso dos filmes Carruagens de Fogo, Doutor Jivago e Blade Runner.

Blade Runner, o Caçador de Andróides (1982)
Algumas dessas histórias estarão presentes no documentário de longa-metragem sobre o Cine Argus, que já foi finalizado e será em breve exibido em Castanhal.