domingo, 31 de janeiro de 2016

A Copa do Mundo e o Cinema

Mais uma crônica de Amílcar Carneiro, dessa vez mostrando a relação do Cine Argus com o futebol. Era comum a formação de plateia em frente aos trilhos do trem para ouvir os jogos transmitidos pelos auto falantes do Argus. Os cinejornais e, mais tarde, os filmes com os melhores momentos dos jogos, atraíam grande público para o cinema de Seu Duca. Amílcar faz um passeio histórico interessantíssimo ao longo da história das copas do mundo, de 1930 a 2010, mostrando a relação entre o evento esportivo mais popular do planeta e o célebre cinema de Seu Duca. Mais uma curiosidade extraída das memórias de Amílcar Carneiro, em seus "Coisas de Cinema."

A Copa do Mundo e o Cinema

Por Amílcar Carneiro

A grande maioria dos habitantes do planeta Terra vive ligada em um evento que acontece a cada 4 anos, na Copa do Mundo de Futebol, competição criada por Jules Rimet, presidente da FIFA, no distante ano de 1930. O Uruguai, primeiro país sede, sagrou-se campeão. A “Celeste Olímpica” confirmava seu favoritismo desbancando os europeus e fazendo a final com a Argentina. Naquele tempo, o cinema, inventado pelos irmãos Lumiére já tinha conquistado o mundo, mas a televisão não passava de um embrião nas experiências do russo Vladimir Zworykin. Os jogos aconteciam e tempos depois chegavam as imagens nas telas dos cinemas por meio dos cine jornais. Em 1934 na Itália e 1938 na França, a “Esquadra Azurra” conquistou os dois títulos mostrando seu poderio. Em 1942 e 1946 foi imposta uma trégua ao futebol enquanto o mundo fazia sua segunda grande guerra. A competição só voltaria a ser disputada em 1950 no Brasil, copa que os brasileiros gostariam de esquecer, mas as câmeras estavam lá para registrar a grande tragédia do nosso futebol, Uruguai 2x1 Brasil em pleno Maracanã. Em 1954,na Suíça, a tragédia foi para a poderosa Hungria, do lendário Puskas, fortíssima candidadata ao título, mas que perdeu a final para a Alemanha Ocidental, a quem já tinha goleado nas oitavas de final.
Na primeira copa vencida pelo Brasil, em 1958, na Suécia, já havia uma estreita relação entre o Cine Argus e o futebol, pois era comum em dias de grandes jogos, os mais aficionados ficarem em frente ao cinema escutando o rádio que retransmitia através dos alto-falantes, os 90 minutos de partida.


Canal 100 e os principais acontecimentos do Brasil e do mundo.

Naquele domingo, 29 de junho de 1958, o  Argus exibia, em sessão matinal, o filme “O Bandoleiro da Cova do Lobo”,  e ao mesmo tempo retransmitia o jogo final entre Brasil e Suécia. De dentro do cinema ouvia-se o foguetório lá de fora, eram os mais fanáticos festejando os 5 x 2 que o Brasil aplicou na anfitriã revelando ao mundo o talento de Garrincha e Pelé entre outros. Meses depois, chegariam as imagens, três ou quatro  minutos dos melhores momentos de cada jogo, mostrados semanalmente nos dois principais jornais da tela: Fox e Atlântida. Qualquer que fosse o filme, as atenções se voltavam para o assunto do cine jornal, futebol.

Em 1962, no Chile, o Brasil foi bi campeão e as imagens chegaram não no cine jornal, mas em um filme exclusivo produzido pelos chilenos, era em preto e branco e mostrava todos os gols da copa e mais os melhores momentos da final em que o Brasil derrotou a Tchecoslováquia por 3 x 1. O filme foi um sucesso, a platéia aplaudia e comentava como se fosse ao vivo. Em 1966, na Inglaterra, os súditos da rainha queriam o título a qualquer custo, e conseguiram, foi produzido, também, um longa metragem a cores intitulado “Gol, A Copa do Mundo”. Mesmo com o Brasil desclassificado na primeira fase, valia a pena ver as belas imagens coloridas que a TV ainda não podia mostrar. Em 1970, ano do tri campeonato e última copa de Pelé, alguns estados do sul já assistiram ao vivo a competição do México, enquanto que  por aqui só assistíamos ao vídeo tape no final da noite ou no outro dia. Mesmo assim o filme produzido pelos mexicanos fez grande sucesso quando foi exibido no Cine  Argus. As imagens a cores e em câmara lenta em diferentes ângulos arrancavam aplausos da platéia. Na copa seguinte, na Alemanha ainda dividida, as transmissões diretas e a TV a cores davam os primeiros sinais de concorrência ao cinema. Em dias de jogos do Brasil o Argus ficava vazio, às vezes nem tinha projeção, também não houve mais interesse em exibir o filme da copa.
Em 1978 na Argentina, 82 na Espanha, 86 no México e 90 na Itália, era evidente o domínio da televisão, os cine jornais já não eram mais nem produzidos, os filmes das copas eram vendidos ou locados livremente em VHS ou DVD. Em 1994 quando o Brasil conquistou o tetracampeonato no EUA, quase todos os cinemas do interior já tinham fechado as portas, o Argus agonizava, fecharia no ano seguinte sem testemunhar o fiasco de 1998 na França nem o sonhado “penta”, conquistado em solo asiático no ano de 2002, primeira copa disputada simultaneamente em dois países, Japão e Coréia.
Na copa de 2006, de novo em solo alemão, a Itália ganhou seu quarto título, a televisão mostrou em todos os ângulos possíveis a cabeçada mais famosa da história, infelizmente não foi na bola, mas no adversário, e manchou a brilhante carreira de Zidane, astro francês que em duas copas atrapalhou o sonho brasileiro de conquistar mais um título.
 Na atual copa na Africa, primeira naquele continente, a televisão dá um verdadeiro show na transmissão dos jogos. Gruas, câmaras fixas, móveis  e portáteis passeiam pelas quatro linhas do gramado e pelo teto dos modernos estádios levando as melhores imagens, ao vivo, para todo o planeta, coisa inimaginável até pelos visionários Jules Rimet, Wladimir Zworykin e os irmãos Louis e Auguste Lumiére.
Na próxima copa do mundo, em 2016, que volta a ser disputada na América do sul, exatamente aqui no Brasil, não será de estranhar se jogadores e árbitros trouxerem embutida no uniforme, uma câmera, algo do tamanho e peso de um botão, capturando incríveis imagens de alta definição que serão mostradas em aparelhos de TV de última geração, com “tela de cinema”.  

Publicado originalmente na Revista Independente, em 2010.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Cine Olympia

Publicamos mais uma crônica de Amílcar Carneiro, originalmente publicada na sessão Coisa de Cinema, da Revista Independente de Castanhal, entre os anos de 2006 e 2007. 

O texto foi escrito em meio às discussões sobre o fechamento do Cine Olympia, de Belém (que graças à pressão popular, não aconteceu!). O autor fala sobre a onda de fechamento de cinemas de rua que veio ganhando força a partir dos anos 60 e 70, chegando ao estopim nos anos 80. A crônica apresenta a visão de um exibidor sobre a extinção de vários cinemas e retrata a tensão e o debate em torno da iminência do fim do cinema hoje considerado o mais antigo do Brasil em funcionamento.

Com vocês, mais um "Coisas de Cinema"!


Cine Olympia

Quem leu minha página na edição anterior sabe que me comprometi a contar causos de vivência em cinema, mas não podia perder a oportunidade de registrar este momento histórico que é o fechamento do cine Olímpia em Belém, o mais antigo do Brasil em funcionamento. Esta frase ``o mais antigo do Brasil em funcionamento``, longe de ser um elogio, mostra muito bem o que tem acontecido com outros tantos cinemas maiores ou mais importantes que o Olímpia pelo Brasil afora.
Na década de 1960, grandes cinemas que fizeram história em Belém fecharam suas portas melancolicamente, Moderno, Independência e Art. Em Manaus, os melhores cinemas da cidade deram lugar a magazines surgidos com a zona franca. Nos anos setenta o fechamento em massa dos maiores cinemas do país localizados no eixo Rio São Paulo dava inicio a era dos multiplex, cinemas geminados, pequenos, confortáveis e com diversidade de programações.
Na década seguinte, 1980, o vendaval de fechamentos de cinemas se arrastou pelas capitais e pelo interior, Em Manaus, de novo cinco salas que homenageavam ícones da sétima arte cerraram sua portas, Cines Oscarito, Grande Otelo, Chaplin e Carmem Miranda. Em Belém, Palácio e Paraíso deram lugar a igreja Universal. Em Fortaleza os cines Diogo, Jangada e São Luis, cinemas de grande porte, deram lugar a outros tipos de comércio. Em Recife, Trianon, Arte Palácio, Veneza e Moderno, todos de luxo, com mais de mil lugares, renderam-se a nova realidade fechando por falta de público.
Alguns cinemas sobreviveram exibindo filmes pornô, como o Cine Passeio em São Luis e o Rex em Terezina, mas acabaram fechando por falta de matéria prima, ou seja, fitas pornô em 35mm. Neste estilo sobreviveu apenas o Cine Opera em Belém, único cinema do Brasil que ainda exibe pornô, e o motivo é que seu público cativo não vai ali para assistir filme. Mesmo assim o prédio está a venda, quem tiver 4 milhões de reais se habilite.
Mas, voltemos ao Olímpia... Cine Olímpia de saudosa memória. A primeira vez que ouvi falar nele tinha uns cinco anos de idade, minha mãe chegou com meu pai de Belém dizendo que tinha assistido um filme onde as pessoas saiam da tela, em um cinema cuja tela era de costas para a entrada. Era a maravilha da terceira dimensão em que o ilusionismo chega ao extremo e a impressão é que realmente as imagens saem da tela. Já era uma tentativa dos americanos de enfrentar a crise do cinema que por lá se instalava. Tudo nos EUA acontece trinta anos antes, ou mais.
Anos depois eu fui assistir no Olímpia ao famoso A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, inaugurando as novas instalações da sala com central de ar condicionado e cadeiras estofadas que lhe valeu o título de cinema mais luxuoso do norte e nordeste do Brasil por alguns anos, com direito a exigir dos freqüentadores traje passeio. Ou seja, camisa de meia sem gola nem pensar. Isto era prática comum nos cinemas da época. Aqui mesmo em Castanhal não era permitido entrar de bermuda ou tamanco, depois foram sendo permitidos os trajes mais despojados como os tempos atuais exigem. Mas pra quem assiste em casa o filme que quer, por que se deslocar a um cinema mesmo em trajes de banho?
            Esse inevitável destino do Cine Olímpia sempre traz discussões, frases saudosas e até promessas políticas, a sociedade não aceita, governantes se dizem preocupados, o secretário de cultura pede mais tempo para diálogos. Mas só o proprietário é que sabe quanto custa manter a casa no vermelho. No caso do Cine Olímpia, o proprietário não é um exibidor qualquer, é o maior do Brasil em todos os tempos, ninguém menos do que a família Luis Severiano Ribeiro, dinastia que começou a construir seu império no inicio do século passado e sabe muito bem quando deve fechar ou abrir um cinema, Quem quiser manter o Olímpia intacto faça como a Igreja Universal, pague pra ver, ou manter, da maneira que melhor lhe convier.

Por Amílcar Carneiro

Texto originalmente publicado na Revista Independente (2006/2007)

domingo, 17 de janeiro de 2016

Coisa de Cinema

Qualquer um sabe que tudo que é fantástico, grandioso, extremamente belo ou maravilhoso é chamado “coisa de cinema”, que vem a ser herança incontestável da fantástica fabrica de sonhos chamada Hollywood. A frase já dá idéia de espetáculo de grandes proporções. Mas no diversificado mundo do cinema, fora dos estúdios e dos grandes espetáculos, no ultimo elo da cadeia que é o exibidor, principalmente o do interior, aconteceram coisas de cinema que ninguém conhece e nem gostaria de participar.
Foram situações que só quem viveu na dependência da exibição e que sentiu na pele os problemas pode relatar. Quem hoje vai a uma locadora, ou adquire, mesmo na calcada, um DVD pirata e escolhe qual filme quer assistir, no horário que  bem entender, não imagina o esforço que se fazia para colocar um filme  em cartaz. Os exibidores do interior, sempre relegados a ultimo plano, tiveram momentos dificílimos para manter uma programação de agrado do publico que não tinha escolha. Meu pai, que era conhecido em Castanhal como Duca do cinema, não media esforço para estrear um bom filme, que sabia ser de agrado do publico em geral. Ainda hoje me pergunto como é que, em 1957,ele conseguiu exibir, no dia das crianças, o filme “Pinochio”, desenho de Walt Disney, dando uma sessão gratuita para qualquer aluno fardado e os do Colégio São José e Grupo Escolar Cônego Leitão estiveram em peso, já que eram os únicos estabelecimentos que adotavam fardas na época. Mas as situações inusitadas foram muitas, algumas pitorescas, poucas desastrosas, a maioria com final feliz.
Vou relatar duas que acredito sejam de interesse para quem quer ter uma idéia de como funcionava a exibição e transportes de filmes. Vale lembrar que uma fita de 35 mms, com duração de 120 minutos era embalada em partes, com um peso médio de 20 kgs. Corria o ano de 1974, sexta feira santa, na época o melhor dia para os exibidores quando se dava 5 sessões do filme “A Vida  de Cristo”. Nosso circuito, com quase 20 cinemas, tinha um problema para esse dia, pois havia mais salas exibidoras do que copias do filme. Para que o cinema de Santa Izabel não ficasse sem o filme foi montada uma operação para exibição simultânea com Castanhal, da seguinte maneira: sessão dupla em Castanhal, começando 19:30. Exibida a primeira metade, saia um carro rumo a Santa Izabel onde a sessão começava mais tarde, às 20:30 e retornava  de imediato para pegar a outra metade em Castanhal, voltando para Santa Izabel a tempo de continuar a exibição da última parte. Ai Voltava de Santa Izabel com o filme completo para fazer a ultima sessão em Castanhal. Tudo saiu a contento, com o público satisfeito e o dono do cinema também com as bilheterias correspondendo ao esforço, mas bastaria um pneu furado, por exemplo, para que o esquema falhasse e gerasse insatisfação do público em ambas as praças.
Outro caso digno de menção foi na estréia do filme “007 Contra o Homem com a Pistola de Ouro”. Era um sábado com programação dupla, o 007 e mais um filme de karatê como era de costume nos anos 1970. O filme viria de Imperatriz e deveria ser despachado na véspera de ônibus, mas por algum motivo o ônibus não trouxe a carga. A solução emergencial foi por via aérea, utilizando-se um vôo da Varig que no dia seguinte fazia escala em Imperatriz e que traria o filme para Belém, onde seria recebido em tempo hábil. Assim meu pai saiu de Castanhal as 18 h, e se tudo corresse bem o filme estaria em Castanhal a tempo de ser exibido, mas na dúvida não se podia nem começar a vender ingressos. Às 19h15min uma multidão já se formada em frente a bilheteria e nada da confirmação da chegada do filme em Belém. Às 19:30 consegui contato telefônico com o setor de carga da Varig no aeroporto e a confirmação de que meu pai estava lá. Falei com ele que confirmou o pouso do avião e que já estava vendo o Mescouto com o filme nas costas (Mescouto era um funcionário nosso, exclusivo para fazer remessa e receber filmes em Belém. Tinha acesso a todo departamento de carga de todas as empresas transportadoras, fosse aérea, marítima ou rodoviária). Ele havia entrado no compartimento de carga do Boeing 737, saiu de lá com o filme e ficou esperando para assinar a papelada de praxe, enquanto meu pai zarpava em uma Variant chegando em Castanhal a tempo da exibição no horário certo. Mas por pouco o plano não foi por águas abaixo.

Por Amílcar Carneiro
Texto originalmente publicado na Revista Independente (2006/2007)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

O Adeus de José Tavares

Fico imaginando a chegada de Tavares no Céu. O moleque travesso que frequentava o Cine Argus e que tantas vezes furava a entrada do cinema, enganando o pobre Pati, talvez hoje tenha sentido vontade de ludibriar São Pedro e entrar escondido. Só por malandragem. Mas, não precisou. Gente bacana como ele, simples, dedicado, disposto a ensinar e a servir, a ajudar, a fazer os outros felizes, do jeito que ele fazia, só pode entrar pela porta da frente.

José Tavares em Memórias do Cine Argus

A entrevista de José Tavares a Memórias do Cine Argus foi um depoimento de vida riquíssimo. De uma espontaneidade cativante, Tavares nos contou as peripécias que fazia quando garoto para entrar escondido no cinema, levando ainda alguma namoradinha, e falou sobre as suas inesquecíveis sessões pornôs (ver "Império dos Sentidos"). Esses dois relatos estão no filme e refletem o jeito irreverente que marca sua personalidade. Mas, a entrevista dele foi bem que isso. Tavares falou sobre a infância difícil, vendendo sacos no mercado e poupando um dinheirinho para ir ao Cine Argus. Quando não tinha dinheiro, o jeito era furar mesmo. Os filmes de Bruce Lee inspiravam ele e os irmãos a treinarem os golpes vistos no cinema. O jovem Tavares achava que, se ele se concentrasse como Bruce Lee, não sentiria as pancadas quando apanhasse da mãe. "As pancadas que o cara levava no filme, normalmente ele não sente muito porque ele tenta se concentrar. Na casa da gente, a gente pensava que se se concentrasse, as pancadas que a mamãe dava, a gente não sentia", relembrou aos risos.

O menino Tavares entre os irmãos. Treinos de karatê para não sentir as sovas da mãe.

As travessuras eram algumas vezes repreendidas pelo zelador e porteiro Joaquim Sena (Pati) e por Seu Duca, o dono do Cine Argus, por quem nutria grande respeito. "Todo mundo gostava do Seu Duca, do menino ao velho. Todo mundo gostava dele. Não deixava a desejar a ninguém. Do jeito que ele tratava uma criança ele tratava um cidadão de 90 anos. Do mesmo jeito. Brincava com o grande, brincava com o pequeno. Não é porque tu tem, pode... ou como diz a história: tu tem mais dinheiro aqui, que ele te tratava inferior a ele, não. Ele tratava todo mundo igual. Pra ele todo mundo... ele dependia daquilo. Então, ele trabalhava com todo mundo do mesmo jeitinho. Tanto faz que tu só tenha aquela moedinha pra entrar no cinema, como aquele que vinha que comprava o picolé, comprava a pipoca, comprava aquele amendoim com açúcar que o cabra ficava fazendo ali fora", relatou Tavares. 
 Satisfeito com sua participação no filme, José Tavares não perdia uma exibição do filme Memórias do Cine Argus em Castanhal. Assim como outros, estava esperando para conferir a versão estendida do filme, que será lançada em março desse ano, e na qual deve aparecer mais vezes.

Depois de muito treino nessa vida, da infância trabalhando na feira ao cargo de servidor público no IFPA, ele agora pode se concentrar como nos filmes de Karatê. A última pancada a doer foi a do acidente de moto de hoje. Nenhuma dor mais. Ou necessidade de dinheiro. Ou precisão de furar. Vai entrar pelo tapete vermelho, com uma cortesia para ficar no balcão, na parte mais alta do cinema e com a melhor vista. E, quem sabe, já não tenha se encontrado com Seu Duca.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Nascido em Dia de Faroeste

É difícil falar de Cine Argus e não falar de Amílcar Queiroz Carneiro. Quinto dos dez filhos de Manoel Carneiro (Seu Duca) e de Nila Carneiro, Amílcar trabalhou ativamente no cinema do pai e assumiu a gerência do circuito de exibição da Empresa Argus quando o mesmo faleceu, vítima de acidente de trânsito, em 1982. Desse ano até o fechamento do Cine Argus em 1995, Amílcar foi o programador do antigo cinema de rua de Castanhal e de dezenas de outros do interior do estado e de Imperatriz (MA) e Macapá (AP), que faziam parte do circuito exibidor do qual o cinema de Castanhal era a principal sala.

Considerado a principal referência para quem pesquisa sobre o Cine Argus, Amílcar foi o primeiro entrevistado de nosso documentário. As histórias são tantas e tão interessantes´que foram necessários três dias de entrevistas e horas de gravação para registrá-las, nos anos de 2012 e 2014. Somente suas entrevistas já daria um filme. Responsável pela guarda do rico acervo de fotografias histórias de Castanhal e dos empreendimentos cinematográficos da família Carneiro, sua colaboração foi fundamental para a realização do Memórias do Cine Argus. A maior parte das imagens de arquivos utilizadas são do acervo da família Carneiro.

Amílcar Carneiro em Memórias do Cine Argus (2012)

Amílcar Carneiro em Memórias do Cine Argus (2014)  

Todos os filhos do casal Duca e Nila foram profundamente influenciados pela sétima arte e possuem uma relação forte com o cinema. Amílcar foi exibidor e hoje é documentarista, tendo produzido, dentre outros filmes, os premiados "Salve Maria" e "O Grito da Mãe Grande". O irmão Chico Carneiro, que mora em Moçambique, é cineasta. Na entrevista concedida em 2012, Amílcar fala que o casamento da família Carneiro com o cinema começa com o seu pai e nos conta um pouco da saga de Seu Duca e da parceria com Paulo Cavalcante na fundação do Cine Argus.

"Meu pai contava a história de que ele era balconista na mercearia de Seu Anastácio, nas imediações da estação. E o seu Anastácio também tinha um galpão nos fundos, que um cidadão vinha esporadicamente, passava os filmes, mas o Seu Anástacio não acreditava no negócio. Não era muito entusiasmado, apenas alugava o barracão. E essa pessoa vinha também com dificuldade. E o papai ajudava muito, limpava o salão, ia pra bilheteria, fazia qualquer negócio pra exibir filmes. Ele queria é ta próximo do projetor de cinema. Então, ele se dispunha a trabalhar de graça pra ver aquele cinema funcionando. Que acabou não funcionando por muito tempo. Esse cidadão desistiu. Aí, tempos depois apareceu outro. Esse sim era um exibidor apaixonado igual o papai. Era Paulo Bezerra Cavalcante. Chegou em Castanhal também com o intuito de exibir filmes e por coincidência a primeira pessoa que ele encontra é meu pai na mercearia do Seu Anastácio, que já foi dizendo que tinha um galpão lá atrás, que era só fazer uma limpeza. Então, acabaram se associando (...) meu pai fazia a limpeza do salão, os preparativos, fazia a divulgação do filme que ia passar. As vezes, a divulgação se resumia a “hoje tem filme”, porque não sabia qual era o filme (RISOS) O Paulo Cavalcante desistiu também, aí o papai alugou a máquina, o projetor, pra ficar exibindo filmes, ele nunca mais parou (...) e aí, desse galpão do seu Anastácio, quando encerrou, ele passou a trabalhar por conta própria, alugando um prédio perto da prefeitura, onde o Cine Argus funcionou um tempo (...) o Cine Argus no endereço definitivo é a partir de 1944. Papai conseguiu um empréstimo com o cunhado dele, Seu Lins, que era comerciante em Castanhal, comprou um terreno e construiu o cinema. Barracão de madeira, só a frente que era de alvenaria, mas já com estilo de cinema, com declive no piso, cabine de projeção, que é aquela foto antiga, clássica, tradicional do cine argus da década de 40, que nós temos. Ali o cine argus funcionou até fechar em 1995".

Amílcar nasceu em 1948, poucos anos depois da inauguração do prédio definitivo do Cine Argus, onde sua família morou nos altos, por muito tempo. "Minha relação com o Cine Argus é umbilical. Eu nasci lá. Meu pai quando casou com minha mãe, morava no cinema. Então, os cinco primeiros filhos nasceram lá, na cabine", conta. "Teve o nascimento de um irmão meu, e tava tendo projeção e a mamãe não podia gritar pra não atrapalhar a plateia lá, né. E tava naquela expectativa de chegar a parteira, e a mamãe aumentando as dores e o pessoal dizia 'calma que ta pra terminar o filme', e depois 'já terminou, o pessoal já saiu!' e ela começava a gritar", Amílcar relembra aos risos. O nascimento do entrevistado não foi diferente. "E eu nasci lá dentro. Mamãe diz que tava passando um filme de faroeste, que o barulho era grande de tiro e o pessoal aplaudindo e tal, ela pôde gritar mais um pouco, a vontade. Talvez por isso que eu gostava tanto de filme de faroeste".

Prédio definitivo do Cine Argus, na década de 40, nos altos do qual morava a Família Carneiro.


Das peripécias de Seu Duca em passar os mesmos rolos do filme A Vida de Cristo nas cidades de Castanhal e Santa Izabel simultaneamente, à exibição de filmes para a colônia japonesa, passando pelas sessões pornográficas, o show de calouros do Capiti, a ampliação do circuito exibidor da Empresa Argus, a concorrência com a TV e com o VHS, até chegar ao fechamento dos cinemas de rua, as histórias sobre o Cine Argus são muitas e variadas. E tantas que nos anos de 2006 e 2007 Amílcar escreveu algumas crônicas para a Revista Independente, em uma coluna chamada "Coisas de Cinema", na qual contou diversos causos do inesquecível cinema de rua de Castanhal. 

Para quem leu e gostaria de rever ou para quem não teve a oportunidade de ler essas crônicas, passaremos a publicá-las todas aqui no blog, semanalmente. Oportunidade para conhecer um pouco mais das histórias de nosso saudoso cinema, contadas por uma das principais (se não a principal) memórias do Cine Argus. 

Vem aí, em nosso blog: Coisas de Cinema, com Amílcar Carneiro!

domingo, 3 de janeiro de 2016

Cinéfilo e Colecionador

O Cine Argus formou uma geração de cinéfilos. Vários de seus antigos expectadores hoje colecionam filmes, pôsteres e diversos produtos relacionados à sétima arte. Um cinéfilo em particular possui uma coleção grandiosa e invejável de materiais promocionais do Cine Argus. Estamos falando do repórter Marco Jatene.

Marco Jatene em Memórias do Cine Argus

"Assiduidade do cinema é que como se a gente fosse pra uma missa, né. Quase todo o final de semana a gente tava lá firme e forte. Quando não, ia na segunda. Que era reprise. E o legal foi isso. Era outro mundo, me abriu as portas pra muita coisa", relembra Marco Jatene (ou Marcão, como é popularmente conhecido em Castanhal) em entrevista ao filme Memórias do Cine Argus. Com ele, temos não apenas o depoimento de um assíduo frequentador do antigo cinema de rua de Castanhal, mas de alguém que conseguiu conservar, além das memórias, também fontes materiais. Marcão tem a posse de vários posteres e cromos originais utilizados no Cine Argus. Quem frequentou o Cine Argus lembra que, no saguão de entrada, eram afixados os posteres dos filmes exibidos e das próximas atrações. O filme em cartaz tinha em exposição um poster e ao lado alguns cromos que apresentavam cenas do filme. Por ocasião do fechamento do Cine Argus, Marcão salvou vários desses materiais, os quais hoje guarda com muito carinho. Ele nos contou como foi.

"Na realidade, eu sempre tive uma vontade, desde criança, de conseguir material de cinema, pôsteres, souvenires, alguma coisa assim. E eu fiz uma amizade com a família Carneiro e eles acabaram me cedendo algum material. E isso eu acabei pegando gosto pela coisa e todo cinema que eu ia, eu ficava perturbando a turma, “ei, eu quero isso, eu quero aquilo, consegue pra mim e tudo mais" [...] Quando o cinema fechou, o Amílcar me chamou e disse “Marcos, a gente tem um material assim, você pode levar o que você quiser, que provavelmente vai ser queimado". Aí eu dei uma garimpada, agradeci muito o Amílcar, consegui um material muito antigo, um material legal, e isso aumentou muito o meu acervo".

Marcão apresentou com orgulho vários itens de sua coleção, obtidos no Cine Argus. Dentre eles, destaque para os pôsteres e cromos de A Vida de Cristo, Zorro, Tarzan, Loucademia de Polícia, Operação Dragão, Scarface, Marnie - Confissões de uma Ladra, 007, alguns filmes com Chucky Norris, Costinha e Grande Otelo e Debi & Lóide, o último filme exibido pelo Cine Argus, em 1995.




A entrevista de Marco Jatene foi realizada na entrada do Cine Sesc, em Castanhal, em frente a uma pintura do Cine Argus dos anos 40 e próximo às únicas poltronas conservadas desse querido e inesquecível cinema. Dentre as várias histórias contadas, Marcão lembra do episódio hilariante do dia em que o Cine Argus fez sua primeira projeção em dolby stereo, com o filme Terremoto, e muitas pessoas se assustaram com os efeitos sonoros dos tremores provocados pelas diversas caixas de som ao redor do cinema, com os expectadores mais gaiatos gritando "Terremoto! Terremoto!".

Por uma delimitação de tempo, a coleção de Marcão Jatene não é apresentada no curta Memórias do Cine Argus, mas é material certo para a versão em longa metragem, que deve ser apresentada em março de 2016.