domingo, 10 de abril de 2016

Coisas de Última Hora

Manter um cinema funcionando no interior do estado nunca foi tarefa fácil. Quem acompanhou a programação de filmes do Cine Argus e de outros cinemas pertencentes ao circuito da Empresa Argus Ltda, não tem ideia das peripécias que Seu Duca fazia para garantir a exibição das obras cinematográficas em suas salas.

Na crônica abaixo, de Amílcar Carneiro, publicada originalmente em 2001, o filho de Seu Duca e exibidor do Cine Argus nos treze anos finais de sua existência relata as "coisas de última hora" que costumavam ser feitas para garantir a programação. Dentre as histórias, está a exibição simultânea do filme A Vida de Cristo simultaneamente nas cidades de Castanhal e Santa Izabel, com apenas uma cópia do filme, fazendo o revezamento das partes do filme. Uma das várias similaridades entre o Cine Paradiso e o Cine Argus. Esta história, inclusive, será contada no filme Cine Argus, o Cinema de Seu Duca, documentário de longa-metragem que será exibido em breve.

Coisas de Última Hora

Meu pai era pessoa muito organizada, que gostava das coisas na hora certa e em seus devidos lugares, desde o local das escovas de dente e de cada um a mesa, até o rígido horário das refeições diárias. Por isso, era de se admirar, e muito, de como ele gostava de arriscar e improvisar coisas de última hora em assuntos muito sérios como, por exemplo, marcar estréia de filmes sem que o mesmo estivesse “em casa”, isto é,  dependendo ainda de chegar de algum lugar e deixando, nele mesmo, papai, uma expectativa desgastante. Ao longo de vários anos, acompanhei com bastante frequência muitos episódios dignos de deixar qualquer um com os nervos em frangalhos.

Na época em que Castanhal dispunha apenas da energia fornecida pela prefeitura, ligada às 18 horas e encerrada às 23 horas, havia sempre no Cine Argus as sessões de fim de semana, com dois filmes na programação e que terminavam por volta das 23 horas. A partir das 22: 30 – e dependendo do tamanho do rolo do filme que ainda faltava rodar – começava o drama: será que vai dar tempo? Será que a luz vai apagar antes? Por várias vezes me lembro de Ter ido até a usina de luz, de bicicleta, pedir ao funcionário encarregado para retardar um pouco o desligamento do motor, o que eles sempre atendiam com prazer sabendo que era para o cinema (claro que eu sempre levava uma gorjeta para o plantonista da usina).

Estréia de filme que ainda ia chegar na cidade, perdi até a conta, tantas foram. Filme com previsão de chegada em Belém às 18:30, estreando em Castanhal às 20 horas. Haja coração e o pior era quando, vez por outra, não chegava. Aí o drama era para quem estava em Belém aguardando, e para quem estava em Castanhal, quando a situação era pior, já que tinha que explicar ao público o motivo do atraso. O público, obviamente, não entendia. Como era possível anunciar um filme que ainda não havia chegado?

Certa vez, numa sexta-feira santa, foi exibido o filme “A Vida de Cristo” simultaneamente em Castanhal e Santa Isabel, cidades distantes 30 km uma da outra, com uma só cópia da fita, dividida em duas partes. A sessão começou em castanhal às 20 horas. Terminado a primeira parte, inicia a segunda parte em Castanhal, enquanto meu irmão Chico Mou leva a primeira parte para Santa Izabel, de carro. Volta a Castanhal para buscar a segunda parte da fita. Leva esta parte para Santa Izabel e traz a primeira, para iniciar a segunda sessão de Castanhal. Volta a Santa Isabel para buscar a segunda parte, e assim por diante. Felizmente deu tudo certo, com os dois cinemas lotados, principalmente o de Castanhal. Mas, bastaria um pneu furar para quebrar todo o esquema e gerar um possível quebra-quebra nos cinemas.

Em um certo dia de 5 de setembro de 1979, uma segunda-feira, eu ia chegando no Cine Argus e logo papai me deu a chave do carro, com a seguinte ordem: vai lá em Bacabal-Ma fazer procuração do filme “O Exorcista II” e leva para Imperatriz, sem falta, que ele estréia lá amanhã. Eis o dinheiro da viagem, entra em Capanema e apanha algum funcionário do Waldir para facilitar a busca do filme (Bacabal fica a 700 kms de Castanhal, era praça controlada pelo Waldir e o filme tanto podia estar lá como podia estar em outra praça adjacente como Santa Inês, Codó, Pedreiras, Lago da Pedra ou Peritoró).

Fomos eu e Tizeca, que na época vivia encostado pelo Argus, fazendo serviços de mecânica e de motorista. Entramos em Capanema e levamos o próprio Waldir. A ponte sobre o rio Gurupi havia tido problemas e a travessia estava sendo feita por balsa, o que retardou muito a viagem, já que chegamos em Bacabal depois da meia noite. O filme estava para Codó e só retornaria de madrugada. Na manhã de terça-feira recebemos o filme e seguimos para Imperatriz pela estrada que liga Santa Inês a Açailândia, na época ainda em construção, com piçarra e em condições precaríssimas. Chegamos em Imperatriz às 19 horas e o movimento em frente ao cine Marabá já era grande e a estréia foi um sucesso. De volta a Castanhal no outro dia, fomos recebidos pelo papai com a seguinte frase: “abasteçam e sigam para Tomé Açu levando estes dois filmes, a estréia é hoje e parece que a balsa de Bujaru só funciona até as sete da noite.” Emendamos para Tomé Açu onde a cena de Imperatriz se repetiu, ou seja, uma multidão em frente ao cinema aguardando a chegada do filme.

Quando tudo dava certo, era muito bom, gratificante, um verdadeiro final feliz. Mas nem sempre era assim, e quando dava errado as conseqüências eram desastrosas, tanto pela reação do público, que se considerava enganado, como para nós, os exibidores que, além de amargar prejuízos, ainda passávamos, realmente, por enganadores. Mas nem os trágicos desfechos serviam de lição, pois logo vinha outra emergência para ser resolvida de última hora. Tinha-se a impressão, por vezes, que o papai procurava fazer por onde se envolver nesses episódios mirabolantes e estapafúrdios.

Noutra vez, às 16 horas de um domingo, papai me mandou em São Miguel do Guamá buscar uma lente projetora que lá estava sobrando e que ele iria levá-la, no mesmo dia, para Icoaraci, a fim de instalá-la no Cine Ipiranga. O público de Icoaraci estava prestigiando o cinema da Vila e merecia uma atenção melhor quanto a qualidade da projeção, o que era uma preocupação permanente dele. Mas eu não poderia retornar de São Miguel antes das 18 horas e o papai, na melhor das hipóteses, teria que sair de Castanhal antes das 19 horas, a fim de ter tempo para efetuar a troca da lente, já que a sessão começaria às vinte horas. Eu realmente consegui ir a São Miguel e voltar em tempo hábil, pois cheguei em Castanhal precisamente às 18:10, com tempo de sobra para a viagem a Icoaraci. Aconteceu que eu, sem ter pedido maiores detalhes da lente, acabei trazendo o equipamento errado. Quem bem conheceu o papai, pode imaginar o seu desabafo naquela hora...

Em Icoaraci, aliás, sobraram episódios de última hora. No inicio de 1973, um incêndio destruiu o prédio, ficando em pé apenas as paredes, e a reforma durou o ano inteiro. A reabertura ficou programada para o dia 23 de dezembro, um sábado. Eu e o Gilberto, meu irmão, fomos nos juntar aos demais funcionários que lá estavam trabalhando em ritmo acelerado. Klinger era o mestre de obras auxiliado pelo Zé Quedinha e Mescouto e o Zé Preto funcionando também como cozinheiro. Havia ainda um pedreiro e seu ajudante, de Icoaraci mesmo, que pavimentavam a calçada. Minha missão, com o Gilberto, era a montagem das cadeiras, cujo plano já tinha sido feito. Seriam três filas, uma central, com 6 cadeiras e duas laterais, com 4 cadeiras cada uma. Seriam ao todo 14 cadeiras em cada fila, separadas por dois corredores e nada mais havia a discutir em relação a isso. Começamos a montagem, cabendo a mim as filas de 6 cadeiras e ao Gilberto as de 4. No grupo de trabalho havia ainda o Baltazar que, de férias da Empresa São Luis, fazia a instalação elétrica e o Ademar fazendo a montagem do projetor cinematográfico.

Na véspera da inauguração, quando fomos colocar as cadeiras, já montadas, em suas posições, elas não davam certo. Por um erro de cálculo do papai, os corredores ficaram estreitíssimos, quase não sobrando espaço para circulação. Foi um Deus nos acuda, toda a mão de obra disponível foi usada para refazer todo o trabalho de remontagem das cadeiras. Viramos a noite toda e no dia seguinte, quando a bilheteria abriu, nós ainda estávamos improvisando a colocação das últimas filas. O público entrando e vendo a gente apertar os últimos parafusos.

Ainda durante todo o ano de 1974, como o cinema de Icoaraci não tinha gerente nem operador fixo, nós passamos boa parte do ano levando todo dia um operador e, às vezes, o próprio filme. Saíamos de Castanhal entre 17 e 18 horas para retornar depois da projeção. Muitas das vezes eu ia cedo para Belém cumprir os afazeres de praxe e de lá emendava para Icoaraci. De Castanhal seguia o operador Ademar, de ônibus. Isso diariamente, por mais de um ano. Ou seja, um prato cheio para as “ocorrências de última hora”.

Mas parece que, não contente com tanto improviso, certa vez (um domingo, para não fugir à regra) eu ia saindo de Castanhal com o Ademar e com o Tarabian levando, para ser exibido em Icoaraci, o filme “Os Saltimbancos Trapalhões”, a maior bilheteria da temporada. Papai, como sempre querendo agradar ao público que prestigiava o cinema, resolveu que nós levaríamos um retificador Phillips, para melhorar a projeção. A operação era simples, ao chegar lá, bastava desconectar os cabos do retificador que estava em funcionamento e conectar ao Phipllips e estaria tudo resolvido. E lá fomos nós com o tal retificador dentro de uma Variant. Para quem não sabe, um retificador Phillips é do tamanho de uma máquina de lavar roupa, mas o peso é equivalente ao de seis sacos de cimento, isso mesmo, cerca de 300kgs.

Chegamos cedo em Icoaraci, por volta das 4 da tarde. No cinema não havia ninguém para nos ajudar, tivemos que ir em busca de dois funcionários e começamos a retirar o mondrongo  do carro lá pelas 5 da tarde. Carregar um peso na horizontal até que não é muito difícil mas na vertical e ainda mais no sentido de baixo para cima é uma tarefa lenta e exaustiva. Pois o tal retificador tinha que ser levado para a cabine de projeção, pois ele precisa ficar ao lado do projetor. E a escada de acesso à cabine do cinema de Icoaraci possuía 16 degraus e era bastante íngreme, além de ser, também, muito estreita.. Só dava para trabalhar quatro pessoas de cada vez, duas por cima e duas por baixo. Eu me lembro que fiquei completamente molhado de suor e já sem forças quando alguém avisou que a multidão para comprar ingressos já era grande. Foi aí que me dei conta de que já eram 19 horas, a sessão começaria às 20h e nós ainda estávamos na metade da escadaria.

O cinema ficou superlotado e a sessão começou com atraso. Mas, por algum motivo que não deu pra descobrir na hora, o poderoso retificador Phillips simplesmente não funcionou e pegou fogo. Tivemos que religar o antigo equipamento, que felizmente deu conta do recado. Pior do que a frustração de ter tido tanto trabalho para nada foi ficar ouvindo o Ademar repetir: “eu já disse pro Seu Duca: não adianta fazer coisas de última hora”.

Mas as “coisas de última hora” continuariam. Pareceu mentira, mas uma vez eu e o Josias fomos à Imperatriz com a missão de sacar um dinheiro na Caixa Econômica, que fechava as 13 horas. Naquele tempo os serviços bancários eram demorados e papai precisava do dinheiro no outro dia. Saímos de Castanhal às 9 da manhã, o carro era um Passat novinho em folha. A estrada, felizmente, estava um tapete, recém asfaltada. Chegamos em Imperatriz faltando  cinco minutos para a Caixa fechar e deu tudo certo. Mas é de se perguntar: até que ponto valeria o risco se algo saísse errado? O certo é que, neste caso, valeu.

Eu sempre me dizia que, se um dia viesse a tomar conta da empresa, jamais faria por onde ter que me sacrificar ou a outras pessoas fazendo essas tais “coisas de última hora”, tão desgastante para todos os que participam, direta ou indiretamente. Mas não teve jeito, acabei fazendo pior. Parece que a atividade de exibição no interior é que levava a isso. Ou então seria mesmo a nossa índole?

No segundo semestre de 1982, eu arrendei o cinema de Redenção. O filme escolhido para a reinaguração foi “Os Trapalhões e o Rei do Futebol”. Eu já estava em Redenção na véspera da abertur, mas o filme ainda estava em Macapá. Só havia um jeito de fazer o filme chegar a tempo em Redenção: por via aérea. O filme chegaria em Belém por volta das seis da manhã, Mescouto o receberia e imediatamente o despacharia pela Votec para Conceição do Araguaia. O vôo era um pinga-pinga que só chegaria em Conceição do Araguaia por volta das 15 horas. Como as estradas estavam em condições precárias, eu fretaria um avião em Redenção, distante 100 quilômetros, para ir buscar o filme. Assim foi feito. O tempo de vôo era cerca de 20 minutos. O avião fretado era de garimpo e só tinha a cadeira do piloto. Eu fui sentado no chão e voltei sentado no filme.

A estréia foi um sucesso e a renda deu pra pagar, com sobras, as grandes despesas feitas. Era mais um cinema que reabria graças às inevitáveis manobras “de última hora”.   

Amílcar Carneiro em 03.02.2001.

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