Manter um cinema funcionando no interior do estado nunca foi tarefa fácil. Quem acompanhou a programação de filmes do Cine Argus e de outros cinemas pertencentes ao circuito da Empresa Argus Ltda, não tem ideia das peripécias que Seu Duca fazia para garantir a exibição das obras cinematográficas em suas salas.
Na crônica abaixo, de Amílcar Carneiro, publicada originalmente em 2001, o filho de Seu Duca e exibidor do Cine Argus nos treze anos finais de sua existência relata as "coisas de última hora" que costumavam ser feitas para garantir a programação. Dentre as histórias, está a exibição simultânea do filme A Vida de Cristo simultaneamente nas cidades de Castanhal e Santa Izabel, com apenas uma cópia do filme, fazendo o revezamento das partes do filme. Uma das várias similaridades entre o Cine Paradiso e o Cine Argus. Esta história, inclusive, será contada no filme Cine Argus, o Cinema de Seu Duca, documentário de longa-metragem que será exibido em breve.
Coisas de Última Hora
Meu pai era pessoa muito organizada, que gostava das
coisas na hora certa e em seus devidos lugares, desde o local das escovas de
dente e de cada um a mesa, até o rígido horário das refeições diárias. Por
isso, era de se admirar, e muito, de como ele gostava de arriscar e improvisar
coisas de última hora em assuntos muito sérios como, por exemplo, marcar
estréia de filmes sem que o mesmo estivesse “em casa”, isto é, dependendo ainda de chegar de algum lugar e
deixando, nele mesmo, papai, uma expectativa desgastante. Ao longo de
vários anos, acompanhei com bastante frequência muitos episódios dignos de
deixar qualquer um com os nervos em frangalhos.
Na época em
que Castanhal dispunha apenas da energia fornecida pela prefeitura, ligada às
18 horas e encerrada às 23 horas, havia sempre no Cine Argus as sessões de fim
de semana, com dois filmes na programação e que terminavam por volta das 23
horas. A partir das 22: 30 – e dependendo do tamanho do rolo do filme que ainda
faltava rodar – começava o drama: será que vai dar tempo? Será que a luz vai
apagar antes? Por várias vezes me lembro de Ter ido até a usina de luz, de
bicicleta, pedir ao funcionário encarregado para retardar um pouco o
desligamento do motor, o que eles sempre atendiam com prazer sabendo que era
para o cinema (claro que eu sempre levava uma gorjeta para o plantonista da
usina).
Estréia de
filme que ainda ia chegar na cidade, perdi até a conta, tantas foram. Filme com
previsão de chegada em Belém às 18:30, estreando em Castanhal às 20 horas. Haja
coração e o pior era quando, vez por outra, não chegava. Aí o drama era para
quem estava em Belém aguardando, e para quem estava em Castanhal, quando a
situação era pior, já que tinha que explicar ao público o motivo do atraso. O
público, obviamente, não entendia. Como era possível anunciar um filme que
ainda não havia chegado?
Certa vez,
numa sexta-feira santa, foi exibido o filme “A Vida de Cristo” simultaneamente
em Castanhal e Santa Isabel, cidades distantes 30 km uma da outra, com uma só
cópia da fita, dividida em duas partes. A sessão começou em castanhal às 20
horas. Terminado a primeira parte, inicia a segunda parte em Castanhal,
enquanto meu irmão Chico Mou leva a primeira parte para Santa Izabel, de carro.
Volta a Castanhal para buscar a segunda parte da fita. Leva esta parte para
Santa Izabel e traz a primeira, para iniciar a segunda sessão de Castanhal.
Volta a Santa Isabel para buscar a segunda parte, e assim por diante.
Felizmente deu tudo certo, com os dois cinemas lotados, principalmente o de
Castanhal. Mas, bastaria um pneu furar para quebrar todo o esquema e gerar um
possível quebra-quebra nos cinemas.
Em um certo
dia de 5 de setembro de 1979, uma segunda-feira, eu ia chegando no Cine Argus e
logo papai me deu a chave do carro, com a seguinte ordem: vai lá em Bacabal-Ma
fazer procuração do filme “O Exorcista II” e leva para Imperatriz, sem falta,
que ele estréia lá amanhã. Eis o dinheiro da viagem, entra em Capanema e apanha
algum funcionário do Waldir para facilitar a busca do filme (Bacabal fica a 700
kms de Castanhal, era praça controlada pelo Waldir e o filme tanto podia estar
lá como podia estar em outra praça adjacente como Santa Inês, Codó, Pedreiras,
Lago da Pedra ou Peritoró).
Fomos eu e Tizeca, que na época vivia
encostado pelo Argus, fazendo serviços de mecânica e de motorista. Entramos em
Capanema e levamos o próprio Waldir. A ponte sobre o rio Gurupi havia tido
problemas e a travessia estava sendo feita por balsa, o que retardou muito a
viagem, já que chegamos em Bacabal depois da meia noite. O filme estava para
Codó e só retornaria de madrugada. Na manhã de terça-feira recebemos o filme e
seguimos para Imperatriz pela estrada que liga Santa Inês a Açailândia, na
época ainda em construção, com piçarra e em condições precaríssimas. Chegamos
em Imperatriz às 19 horas e o movimento em frente ao cine Marabá já era grande
e a estréia foi um sucesso. De volta a Castanhal no outro dia, fomos recebidos
pelo papai com a seguinte frase: “abasteçam e sigam para Tomé Açu levando estes
dois filmes, a estréia é hoje e parece que a balsa de Bujaru só funciona até as
sete da noite.” Emendamos para Tomé Açu onde a cena de Imperatriz se repetiu,
ou seja, uma multidão em frente ao cinema aguardando a chegada do filme.
Quando tudo
dava certo, era muito bom, gratificante, um verdadeiro final feliz. Mas nem
sempre era assim, e quando dava errado as conseqüências eram desastrosas, tanto
pela reação do público, que se considerava enganado, como para nós, os
exibidores que, além de amargar prejuízos, ainda passávamos, realmente, por
enganadores. Mas nem os trágicos desfechos serviam de lição, pois logo vinha
outra emergência para ser resolvida de última hora. Tinha-se a impressão, por
vezes, que o papai procurava fazer por onde se envolver nesses episódios
mirabolantes e estapafúrdios.
Noutra vez,
às 16 horas de um domingo, papai me mandou em São Miguel do Guamá buscar uma
lente projetora que lá estava sobrando e que ele iria levá-la, no mesmo dia,
para Icoaraci, a fim de instalá-la no Cine Ipiranga. O público de Icoaraci
estava prestigiando o cinema da Vila e merecia uma atenção melhor quanto a
qualidade da projeção, o que era uma preocupação permanente dele. Mas eu não
poderia retornar de São Miguel antes das 18 horas e o papai, na melhor das
hipóteses, teria que sair de Castanhal antes das 19 horas, a fim de ter tempo
para efetuar a troca da lente, já que a sessão começaria às vinte horas. Eu
realmente consegui ir a São Miguel e voltar em tempo hábil, pois cheguei em
Castanhal precisamente às 18:10, com tempo de sobra para a viagem a Icoaraci.
Aconteceu que eu, sem ter pedido maiores detalhes da lente, acabei trazendo o
equipamento errado. Quem bem conheceu o papai, pode imaginar o seu desabafo
naquela hora...
Em
Icoaraci, aliás, sobraram episódios de última hora. No inicio de 1973, um
incêndio destruiu o prédio, ficando em pé apenas as paredes, e a reforma durou
o ano inteiro. A reabertura ficou programada para o dia 23 de dezembro, um sábado.
Eu e o Gilberto, meu irmão, fomos nos juntar aos demais funcionários que lá
estavam trabalhando em ritmo acelerado. Klinger era o mestre de obras auxiliado
pelo Zé Quedinha e Mescouto e o Zé Preto funcionando também como cozinheiro.
Havia ainda um pedreiro e seu ajudante, de Icoaraci mesmo, que pavimentavam a
calçada. Minha missão, com o Gilberto, era a montagem das cadeiras, cujo plano
já tinha sido feito. Seriam três filas, uma central, com 6 cadeiras e duas laterais,
com 4 cadeiras cada uma. Seriam ao todo 14 cadeiras em cada fila, separadas por
dois corredores e nada mais havia a discutir em relação a isso. Começamos a
montagem, cabendo a mim as filas de 6 cadeiras e ao Gilberto as de 4. No grupo
de trabalho havia ainda o Baltazar que, de férias da Empresa São Luis, fazia a
instalação elétrica e o Ademar fazendo a montagem do projetor cinematográfico.
Na véspera
da inauguração, quando fomos colocar as cadeiras, já montadas, em suas
posições, elas não davam certo. Por um erro de cálculo do papai, os corredores
ficaram estreitíssimos, quase não sobrando espaço para circulação. Foi um Deus
nos acuda, toda a mão de obra disponível foi usada para refazer todo o trabalho
de remontagem das cadeiras. Viramos a noite toda e no dia seguinte, quando a
bilheteria abriu, nós ainda estávamos improvisando a colocação das últimas
filas. O público entrando e vendo a gente apertar os últimos parafusos.
Ainda
durante todo o ano de 1974, como o cinema de Icoaraci não tinha gerente nem
operador fixo, nós passamos boa parte do ano levando todo dia um operador e, às
vezes, o próprio filme. Saíamos de Castanhal entre 17 e 18 horas para retornar
depois da projeção. Muitas das vezes eu ia cedo para Belém cumprir os afazeres
de praxe e de lá emendava para Icoaraci. De Castanhal seguia o operador Ademar,
de ônibus. Isso diariamente, por mais de um ano. Ou seja, um prato cheio para
as “ocorrências de última hora”.
Mas parece
que, não contente com tanto improviso, certa vez (um domingo, para não fugir à
regra) eu ia saindo de Castanhal com o Ademar e com o Tarabian levando, para
ser exibido em Icoaraci, o filme “Os Saltimbancos Trapalhões”, a maior
bilheteria da temporada. Papai, como sempre querendo agradar ao público que
prestigiava o cinema, resolveu que nós levaríamos um retificador Phillips, para
melhorar a projeção. A operação era simples, ao chegar lá, bastava desconectar
os cabos do retificador que estava em funcionamento e conectar ao Phipllips e
estaria tudo resolvido. E lá fomos nós com o tal retificador dentro de uma
Variant. Para quem não sabe, um retificador Phillips é do tamanho de uma
máquina de lavar roupa, mas o peso é equivalente ao de seis sacos de cimento,
isso mesmo, cerca de 300kgs.
Chegamos cedo em Icoaraci, por volta
das 4 da tarde. No cinema não havia ninguém para nos ajudar, tivemos que ir em
busca de dois funcionários e começamos a retirar o mondrongo do carro lá pelas 5 da tarde. Carregar um
peso na horizontal até que não é muito difícil mas na vertical e ainda mais no
sentido de baixo para cima é uma tarefa lenta e exaustiva. Pois o tal
retificador tinha que ser levado para a cabine de projeção, pois ele precisa
ficar ao lado do projetor. E a escada de acesso à cabine do cinema de Icoaraci
possuía 16 degraus e era bastante íngreme, além de ser, também, muito
estreita.. Só dava para trabalhar quatro pessoas de cada vez, duas por cima e
duas por baixo. Eu me lembro que fiquei completamente molhado de suor e já sem
forças quando alguém avisou que a multidão para comprar ingressos já era
grande. Foi aí que me dei conta de que já eram 19 horas, a sessão começaria às
20h e nós ainda estávamos na metade da escadaria.
O cinema
ficou superlotado e a sessão começou com atraso. Mas, por algum motivo que não
deu pra descobrir na hora, o poderoso retificador Phillips simplesmente não
funcionou e pegou fogo. Tivemos que religar o antigo equipamento, que
felizmente deu conta do recado. Pior do que a frustração de ter tido tanto
trabalho para nada foi ficar ouvindo o Ademar repetir: “eu já disse pro Seu
Duca: não adianta fazer coisas de última hora”.
Mas as
“coisas de última hora” continuariam. Pareceu mentira, mas uma vez eu e o
Josias fomos à Imperatriz com a missão de sacar um dinheiro na Caixa Econômica,
que fechava as 13 horas. Naquele tempo os serviços bancários eram demorados e
papai precisava do dinheiro no outro dia. Saímos de Castanhal às 9 da manhã, o
carro era um Passat novinho em folha. A estrada, felizmente, estava um tapete,
recém asfaltada. Chegamos em Imperatriz faltando cinco minutos para a Caixa fechar e deu tudo
certo. Mas é de se perguntar: até que ponto valeria o risco se algo saísse
errado? O certo é que, neste caso, valeu.
Eu sempre
me dizia que, se um dia viesse a tomar conta da empresa, jamais faria por onde
ter que me sacrificar ou a outras pessoas fazendo essas tais “coisas de última
hora”, tão desgastante para todos os que participam, direta ou indiretamente.
Mas não teve jeito, acabei fazendo pior. Parece que a atividade de exibição no
interior é que levava a isso. Ou então seria mesmo a nossa índole?
No segundo
semestre de 1982, eu arrendei o cinema de Redenção. O filme escolhido para a
reinaguração foi “Os Trapalhões e o Rei do Futebol”. Eu já estava em Redenção
na véspera da abertur, mas o filme ainda estava em Macapá. Só havia um jeito de
fazer o filme chegar a tempo em Redenção: por via aérea. O filme chegaria em
Belém por volta das seis da manhã, Mescouto o receberia e imediatamente o
despacharia pela Votec para Conceição do Araguaia. O vôo era um pinga-pinga que
só chegaria em Conceição do Araguaia por volta das 15 horas. Como as estradas
estavam em condições precárias, eu fretaria um avião em Redenção, distante 100 quilômetros,
para ir buscar o filme. Assim foi feito. O tempo de vôo era cerca de 20
minutos. O avião fretado era de garimpo e só tinha a cadeira do piloto. Eu fui
sentado no chão e voltei sentado no filme.
A estréia
foi um sucesso e a renda deu pra pagar, com sobras, as grandes despesas feitas.
Era mais um cinema que reabria graças às inevitáveis manobras “de última
hora”.
Amílcar
Carneiro em 03.02.2001.
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