quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

O Adeus de José Tavares

Fico imaginando a chegada de Tavares no Céu. O moleque travesso que frequentava o Cine Argus e que tantas vezes furava a entrada do cinema, enganando o pobre Pati, talvez hoje tenha sentido vontade de ludibriar São Pedro e entrar escondido. Só por malandragem. Mas, não precisou. Gente bacana como ele, simples, dedicado, disposto a ensinar e a servir, a ajudar, a fazer os outros felizes, do jeito que ele fazia, só pode entrar pela porta da frente.

José Tavares em Memórias do Cine Argus

A entrevista de José Tavares a Memórias do Cine Argus foi um depoimento de vida riquíssimo. De uma espontaneidade cativante, Tavares nos contou as peripécias que fazia quando garoto para entrar escondido no cinema, levando ainda alguma namoradinha, e falou sobre as suas inesquecíveis sessões pornôs (ver "Império dos Sentidos"). Esses dois relatos estão no filme e refletem o jeito irreverente que marca sua personalidade. Mas, a entrevista dele foi bem que isso. Tavares falou sobre a infância difícil, vendendo sacos no mercado e poupando um dinheirinho para ir ao Cine Argus. Quando não tinha dinheiro, o jeito era furar mesmo. Os filmes de Bruce Lee inspiravam ele e os irmãos a treinarem os golpes vistos no cinema. O jovem Tavares achava que, se ele se concentrasse como Bruce Lee, não sentiria as pancadas quando apanhasse da mãe. "As pancadas que o cara levava no filme, normalmente ele não sente muito porque ele tenta se concentrar. Na casa da gente, a gente pensava que se se concentrasse, as pancadas que a mamãe dava, a gente não sentia", relembrou aos risos.

O menino Tavares entre os irmãos. Treinos de karatê para não sentir as sovas da mãe.

As travessuras eram algumas vezes repreendidas pelo zelador e porteiro Joaquim Sena (Pati) e por Seu Duca, o dono do Cine Argus, por quem nutria grande respeito. "Todo mundo gostava do Seu Duca, do menino ao velho. Todo mundo gostava dele. Não deixava a desejar a ninguém. Do jeito que ele tratava uma criança ele tratava um cidadão de 90 anos. Do mesmo jeito. Brincava com o grande, brincava com o pequeno. Não é porque tu tem, pode... ou como diz a história: tu tem mais dinheiro aqui, que ele te tratava inferior a ele, não. Ele tratava todo mundo igual. Pra ele todo mundo... ele dependia daquilo. Então, ele trabalhava com todo mundo do mesmo jeitinho. Tanto faz que tu só tenha aquela moedinha pra entrar no cinema, como aquele que vinha que comprava o picolé, comprava a pipoca, comprava aquele amendoim com açúcar que o cabra ficava fazendo ali fora", relatou Tavares. 
 Satisfeito com sua participação no filme, José Tavares não perdia uma exibição do filme Memórias do Cine Argus em Castanhal. Assim como outros, estava esperando para conferir a versão estendida do filme, que será lançada em março desse ano, e na qual deve aparecer mais vezes.

Depois de muito treino nessa vida, da infância trabalhando na feira ao cargo de servidor público no IFPA, ele agora pode se concentrar como nos filmes de Karatê. A última pancada a doer foi a do acidente de moto de hoje. Nenhuma dor mais. Ou necessidade de dinheiro. Ou precisão de furar. Vai entrar pelo tapete vermelho, com uma cortesia para ficar no balcão, na parte mais alta do cinema e com a melhor vista. E, quem sabe, já não tenha se encontrado com Seu Duca.

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