Mais uma crônica de Amílcar Carneiro, que comenta o importante trabalho de revisão de filmes, que no Cine Argus foi desenvolvido por funcionários como Sabá e Ademar. A tesoura é o grande símbolo de uma época em que o cinema prescindia dos esforços e habilidades de revisores de película para garantir a projeção de filmes danificados. Do apogeu ao declínio da atividade nos anos 80-90, com o fechamento em massa dos cinemas de rua, Amílcar relata com maestria mais essa curiosidade.
Corte e (des)montagem
Já dizia François Truffaut: a
única arte eminentemente cinematográfica é o corte e montagem. E explica: a
fotografia já existia, e a interpretação também, que veio do teatro. E é a pura
verdade. No principio o cinema era apenas o teatro filmado. Depois da
aprimoração da técnica, ou recurso, do corte e montagem é que o cinema
realmente ganhou personalidade, estilo próprio. Corte e montagem é uma
linguagem universal, tal como as notas musicais.
Mas o corte da película não seria
privilégio nem obrigação só dos montadores de um copião em laboratório. A
tesoura era presença obrigatória onde quer que estivesse uma película de
celulóide a ser exibida. Se a fita quebrava, tinha que ser emendada; e para
isso tinha que ser cortada de maneira que não fosse alterada a seqüência dos
fotogramas para não comprometer, também, o enquadramento na tela. Independente
de a fita quebrar ou não, a cada exibição se fazia necessária uma revisão na
mesma; caso houvesse algum risco ou estrago que comprometesse o fotograma, este
teria que ser retirado. Lá entrava de novo a tesoura e a cola.
Foto: Chico Carneiro
Todo operador de cinema tinha também
que ser revisor. Quando a fita era nova não havia problema. Mas nem sempre era
assim. Principalmente no interior, onde as fitas chegavam já com bastante tempo
de exibições quase que diárias, às vezes anos. Isso mesmo, anos. Até meados dos
anos 80, todo filme a ser exibido em território nacional recebia um certificado
de censura da policia federal com validade para cinco anos. Depois disso, se
houvesse interesse da distribuidora em renovar a censura, isso era feito por
mais cinco anos; caso contrário, as cópias eram recolhidas e incineradas.
As fitas muito rodadas chegavam por
aqui em estado lamentável de conservação. Vários fatores contribuíam para isso,
tais como: exibições constantes sem revisão, mau trato no enrolamento das
partes, exibições em projetores velhos e mal conservados e finalmente o próprio
descaso da maioria dos projecionistas, também chamados de operadores.
Um bom operador era também um bom
revisor. Alguns faziam verdadeiros milagres para exibir, sem problemas, cópias
completamente dilaceradas pelo uso. Dois dos melhores operadores que conheci
foram o Odílio e o Ademar. Ambos escolados pelo papai, que desenvolveu técnicas
pessoais de aproveitamento de fitas estragadas.
Toda companhia distribuidora de filmes
tinha uma sala de revisão com, no mínimo, quatro revisores. As grandes
companhias americanas levavam tão a sério a revisão, que tinham até um sistema
de contagem de fotogramas. Era uma maneira de forçar o exibidor a tratar bem da
fita. O filme saia para exibição em uma praça com tantos fotogramas em cada
parte. Havia uma certa tolerância de perda; a partir daí era cobrado do
exibidor determinado valor por cada fotograma perdido.
Sabá e os projetores do Cine Argus
Conheci as filiais de distribuidoras
norte americanas em Recife, no ano de 1982. Naquele tempo, ainda, as salas de
revisão ocupavam o maior espaço físico das distribuidoras. Algumas delas com
até oito revisores trabalhando ininterruptamente nos dois expedientes. Os
revisores emitiam o boletim de revisão, que era um documento tão importante
quanto obrigatório a acompanhar os filmes.
Fato interessante na história de emenda
de filmes é que era obrigatório o uso de uma cola especial à base de acetona; e
terminantemente proibido o uso de fita durex, procedimento muito usado por
alguns operadores. Se fosse encontrado algum vestígio de durex em uma cópia de
filme, o exibidor responsável pela falcatrua estaria fatalmente na lista negra
dos distribuidores.
Hoje, as fitas são emendadas com uma
fita durex especial. A própria película já não aceita mais as colas para
filmes. Parece que os pregadores de durex, como eram chamados os operadores que
não sabiam usar a cola, estavam certos.
Mas entre cola e durex, a tesoura
continuava indispensável junto ao celulóide. Ficou até famosa no tempo da
ditadura quando os filmes eram censurados e mutilados com cortes absurdos. Nos
certificados de censura emitidos pela Polícia federal, vinham detalhadas as cenas
a serem cortadas e até o motivos dos cortes. Lembro de alguns em filmes
nacionais: “cortar a cena em que o personagem principal atravessa uma rua e ao
fundo aparece uma favela”. Motivo: a mesma deturpa a realidade nacional.
“Cortar a cena da praça em que aparece um mendigo”. Motivo: o mendigo não tem
nada a ver com a história do filme.
Sabá operando os projetores do Cine Argus
Nos anos oitenta, quando surgiram os
filmes de sexo explícito, algumas distribuidoras de São Paulo, todas ditas
independentes (termo usado para distinguir distribuidoras particulares das
estrangeiras) usaram e abusaram da tesoura, fazendo trambiques com partes de
filmes. Eles pegavam seqüências mais ousadas de sexo em uma fita e encaixavam
em outras. Às vezes juntavam uma série de seqüências, inventavam um título e
estava pronto um novo filme. Eu, como exibidor, paguei o pato várias vezes:
simplesmente o público pensava que o dono do cinema é que era o responsável
pela prática desonesta.
Paralelo a isso, as grandes
distribuidoras norte americanas praticavam, cada vez mais, o sistema de
lançamento nacional. A ordem era faturar mais em menos tempo, com o aumento do
número de cópias para exibição. Assim os cinemas recebiam cópias sempre novas,
ficando mais fácil a tarefa de revisão de fitas. Com a diminuição de salas de
exibição, o final dos anos oitenta e inicio dos noventa marcou o fechamento em
massa dos cinemas do interior as cópias passaram a ter menor rotatividade,
diminuindo significativamente a necessidade de revisão, e por conseguinte o
número de revisores nas empresas distribuidoras. Houve uma grande crise de
desemprego na categoria. Empresas que mantinham até oito revisores em seu
quadro passaram a precisar de apenas um.
Em algumas delas, funcionários de outro setor passaram a acumular também
a tarefa de revisor. Em geral cartazistas ou remessistas ficavam com essa
tarefa. Prática muito comum entre as distribuidoras foi também a de unirem em
um só espaço o serviço de todas. Dessa maneira, apenas um funcionário de cada
setor servia a mais de uma empresa diminuindo custos. Uniram-se Columbia, Fox e
Warner em um só escritório, mantendo apenas um revisor para as três, que em
épocas anteriores mantinham, cada uma, entre quatro e oito revisores. A UIP,
que já agregava quatro gigantes da cinematografia: Metro, Universal, United e
Paramount, passou a manter apenas um gerente utilizando o espaço físico de uma
independente, a Aquárius, com apenas um funcionário para as tarefas de revisão,
embalagem e remessa de filmes.
O sistema de lançamento nacional –
alguns casos com mais de cem cópias em exibição simultânea – trouxe um novo
problema para as distribuidoras: a falta de espaço para guarda das mesmas.
Depois de exibidas, as cópias encalham; por serem volumosas fica cada vez mais
difícil o armazenamento. As filiais das distribuidoras receberam ordem para se
livrarem das cópias que já não tem mais onde serem exibidas mas não, antes, sem
um corte drástico. Um corte para desmontagem. Os rolos são cortados ao meio,
como pizzas, e jogados ao lixo. Dezenas e até centenas de cópias de um mesmo
filme são destruídas atualmente por este processo. Para partir o rolo ao meio,
se faz necessário uma ferramenta bem mais forte que a tesoura. É a machadinha.
Criou-se então uma nova função na cinematografia: cortador de fita. Mas não se
pense que houve geração de novos empregos. O cortador é o próprio revisor, que
na falta do que fazer com a tesoura, usa agora o machado.
Por Amílcar Carneiro
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