terça-feira, 19 de abril de 2016

Corte e (des)montagem

Mais uma crônica de Amílcar Carneiro, que comenta o importante trabalho de revisão de filmes, que no Cine Argus foi desenvolvido por funcionários como Sabá e Ademar. A tesoura é o grande símbolo de uma época em que o cinema prescindia dos esforços e habilidades de revisores de película para garantir a projeção de filmes danificados. Do apogeu ao declínio da atividade nos anos 80-90, com o fechamento em massa dos cinemas de rua, Amílcar relata com maestria mais essa curiosidade. 

Corte e (des)montagem

Já dizia François Truffaut: a única arte eminentemente cinematográfica é o corte e montagem. E explica: a fotografia já existia, e a interpretação também, que veio do teatro. E é a pura verdade. No principio o cinema era apenas o teatro filmado. Depois da aprimoração da técnica, ou recurso, do corte e montagem é que o cinema realmente ganhou personalidade, estilo próprio. Corte e montagem é uma linguagem universal, tal como as notas musicais.
Mas o corte da película não seria privilégio nem obrigação só dos montadores de um copião em laboratório. A tesoura era presença obrigatória onde quer que estivesse uma película de celulóide a ser exibida. Se a fita quebrava, tinha que ser emendada; e para isso tinha que ser cortada de maneira que não fosse alterada a seqüência dos fotogramas para não comprometer, também, o enquadramento na tela. Independente de a fita quebrar ou não, a cada exibição se fazia necessária uma revisão na mesma; caso houvesse algum risco ou estrago que comprometesse o fotograma, este teria que ser retirado. Lá entrava de novo a tesoura e a cola.

Foto: Chico Carneiro

Todo operador de cinema tinha também que ser revisor. Quando a fita era nova não havia problema. Mas nem sempre era assim. Principalmente no interior, onde as fitas chegavam já com bastante tempo de exibições quase que diárias, às vezes anos. Isso mesmo, anos. Até meados dos anos 80, todo filme a ser exibido em território nacional recebia um certificado de censura da policia federal com validade para cinco anos. Depois disso, se houvesse interesse da distribuidora em renovar a censura, isso era feito por mais cinco anos; caso contrário, as cópias eram recolhidas e incineradas.
As fitas muito rodadas chegavam por aqui em estado lamentável de conservação. Vários fatores contribuíam para isso, tais como: exibições constantes sem revisão, mau trato no enrolamento das partes, exibições em projetores velhos e mal conservados e finalmente o próprio descaso da maioria dos projecionistas, também chamados de operadores.
Um bom operador era também um bom revisor. Alguns faziam verdadeiros milagres para exibir, sem problemas, cópias completamente dilaceradas pelo uso. Dois dos melhores operadores que conheci foram o Odílio e o Ademar. Ambos escolados pelo papai, que desenvolveu técnicas pessoais de aproveitamento de fitas estragadas.
Toda companhia distribuidora de filmes tinha uma sala de revisão com, no mínimo, quatro revisores. As grandes companhias americanas levavam tão a sério a revisão, que tinham até um sistema de contagem de fotogramas. Era uma maneira de forçar o exibidor a tratar bem da fita. O filme saia para exibição em uma praça com tantos fotogramas em cada parte. Havia uma certa tolerância de perda; a partir daí era cobrado do exibidor determinado valor por cada fotograma perdido.

Sabá e os projetores do Cine Argus

Conheci as filiais de distribuidoras norte americanas em Recife, no ano de 1982. Naquele tempo, ainda, as salas de revisão ocupavam o maior espaço físico das distribuidoras. Algumas delas com até oito revisores trabalhando ininterruptamente nos dois expedientes. Os revisores emitiam o boletim de revisão, que era um documento tão importante quanto obrigatório a acompanhar os filmes.
Fato interessante na história de emenda de filmes é que era obrigatório o uso de uma cola especial à base de acetona; e terminantemente proibido o uso de fita durex, procedimento muito usado por alguns operadores. Se fosse encontrado algum vestígio de durex em uma cópia de filme, o exibidor responsável pela falcatrua estaria fatalmente na lista negra dos distribuidores.
Hoje, as fitas são emendadas com uma fita durex especial. A própria película já não aceita mais as colas para filmes. Parece que os pregadores de durex, como eram chamados os operadores que não sabiam usar a cola, estavam certos.
Mas entre cola e durex, a tesoura continuava indispensável junto ao celulóide. Ficou até famosa no tempo da ditadura quando os filmes eram censurados e mutilados com cortes absurdos. Nos certificados de censura emitidos pela Polícia federal, vinham detalhadas as cenas a serem cortadas e até o motivos dos cortes. Lembro de alguns em filmes nacionais: “cortar a cena em que o personagem principal atravessa uma rua e ao fundo aparece uma favela”. Motivo: a mesma deturpa a realidade nacional. “Cortar a cena da praça em que aparece um mendigo”. Motivo: o mendigo não tem nada a ver com a história do filme.

Sabá operando os projetores do Cine Argus

Nos anos oitenta, quando surgiram os filmes de sexo explícito, algumas distribuidoras de São Paulo, todas ditas independentes (termo usado para distinguir distribuidoras particulares das estrangeiras) usaram e abusaram da tesoura, fazendo trambiques com partes de filmes. Eles pegavam seqüências mais ousadas de sexo em uma fita e encaixavam em outras. Às vezes juntavam uma série de seqüências, inventavam um título e estava pronto um novo filme. Eu, como exibidor, paguei o pato várias vezes: simplesmente o público pensava que o dono do cinema é que era o responsável pela prática desonesta.
Paralelo a isso, as grandes distribuidoras norte americanas praticavam, cada vez mais, o sistema de lançamento nacional. A ordem era faturar mais em menos tempo, com o aumento do número de cópias para exibição. Assim os cinemas recebiam cópias sempre novas, ficando mais fácil a tarefa de revisão de fitas. Com a diminuição de salas de exibição, o final dos anos oitenta e inicio dos noventa marcou o fechamento em massa dos cinemas do interior as cópias passaram a ter menor rotatividade, diminuindo significativamente a necessidade de revisão, e por conseguinte o número de revisores nas empresas distribuidoras. Houve uma grande crise de desemprego na categoria. Empresas que mantinham até oito revisores em seu quadro passaram a precisar de apenas um.  Em algumas delas, funcionários de outro setor passaram a acumular também a tarefa de revisor. Em geral cartazistas ou remessistas ficavam com essa tarefa. Prática muito comum entre as distribuidoras foi também a de unirem em um só espaço o serviço de todas. Dessa maneira, apenas um funcionário de cada setor servia a mais de uma empresa diminuindo custos. Uniram-se Columbia, Fox e Warner em um só escritório, mantendo apenas um revisor para as três, que em épocas anteriores mantinham, cada uma, entre quatro e oito revisores. A UIP, que já agregava quatro gigantes da cinematografia: Metro, Universal, United e Paramount, passou a manter apenas um gerente utilizando o espaço físico de uma independente, a Aquárius, com apenas um funcionário para as tarefas de revisão, embalagem e remessa de filmes.

O sistema de lançamento nacional – alguns casos com mais de cem cópias em exibição simultânea – trouxe um novo problema para as distribuidoras: a falta de espaço para guarda das mesmas. Depois de exibidas, as cópias encalham; por serem volumosas fica cada vez mais difícil o armazenamento. As filiais das distribuidoras receberam ordem para se livrarem das cópias que já não tem mais onde serem exibidas mas não, antes, sem um corte drástico. Um corte para desmontagem. Os rolos são cortados ao meio, como pizzas, e jogados ao lixo. Dezenas e até centenas de cópias de um mesmo filme são destruídas atualmente por este processo. Para partir o rolo ao meio, se faz necessário uma ferramenta bem mais forte que a tesoura. É a machadinha. Criou-se então uma nova função na cinematografia: cortador de fita. Mas não se pense que houve geração de novos empregos. O cortador é o próprio revisor, que na falta do que fazer com a tesoura, usa agora o machado.

Por Amílcar Carneiro

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