domingo, 21 de fevereiro de 2016

Guloseimas Antes e Durante os Filmes

Amílcar Carneiro fala sobre o mercado informal que havia em torno do Cine Argus. Assim como as lembranças dos bons filmes, são muito latentes aos frequentadores do cinema de Seu Duca as recordações das gostosuras que eram vendidas nas proximidades do cinema. Amílcar relembra algumas delas e curiosidades, como a proibição dos chicletes por Seu Duca.

Empregos Indiretos
Por Amílcar Carneiro

Empresas e governo se vangloriam de criar empregos indiretos sempre que querem valorizar um projeto, mas combatem com veemência a informalidade. Se cada emprego direto gera outros tantos indiretos, 80% destes serão informais. Que o diga a indústria de reciclagem de lixo. O trabalho informal aparece onde existe movimento de pessoas, gente trabalhando, se divertindo ou simplesmente passeando numa praça. Repare uma nova construção, diariamente vários vendedores de lanches encostam ali para vender seu produto, estão prestando um serviço que nem uma lanchonete ou restaurante é capaz de fazer, levar o produto na hora e lugar certos por um preço acessível ao bolso do operário. Grandes magazines e shopping têm seus restaurantes e lanchonetes, mas, lá fora, há um batalhão de ambulantes oferecendo produtos mais baratos e de grande atrativo popular. Mas, o que isso tem a ver com cinema? Tudo.
O cinema sempre foi um grande criador de atividades paralelas e informais. A realização de um filme até sua exibição gera mais emprego do que outro produto de qualquer indústria. Mas, quero me deter nas pessoas que tiveram suas vidas ligadas indiretamente nos movimentos dos cinemas. Hoje, as salas requintadas englobam todo o serviço extra como venda de balas pipocas e refrigerantes. Antes, pelo menos no interior, os proprietários não se preocupavam muito com isso, ai surgiam os vendedores de porta de cinema.
Da balinha ao Gibi, passando pelo picolé, tudo era comercializado nas portas dos cinemas. No cine Argus teve vendedores que faziam parte do funcionamento, chegavam antes de todo mundo. Era o caso de Dona Zefinha, que vendia arroz doce em canecas de leite moça e bolo de macaxeira. Dona Cecília vendia bolo de milho, mas só na matinê de domingo. Alguns pasteleiros percorriam o salão com o tabuleiro a tira colo mesmo durante a projeção. Outros, por economia, armavam o charão no cavalete e vendiam lá na calçada.
Se o produto era bom a turma vinha lá fora comprar e voltava correndo para não perder a próxima cena. Era famoso o caracol do Seu (?) um precursor do Churros, um canudo crocante e uma maçã de trigo dentro que fazia a alegria da meninada e dos marmanjos também. Eu mesmo, quase adulto, ainda comi escondido na bilheteria. Os irmãos Carvalho chegavam aos domingos com uma canjica tão requintada que era servida em pratos de louça, talheres de metal, canela a gosto do freguês. A procura era tanto que eles mal tinham tempo de armar o tabuleiro, a demora em voltar pra casa ficava por conta da devolução dos pratos e talheres. O Pontaria vendia uma cocada e um beijo de moça de dar água na boca em qualquer um, sempre deixava algumas de cortesia ao dono do cinema. Havia um cidadão que vendia sequilhos e biscoitos de goma no trem. Com a extinção da estrada de ferro, ele passou a vender no cinema, depois sumiu. Ainda hoje eu tenho saudade do sabor daquela goma adocicada.
 O primeiro a vender balas e bombons variados foi o Álvaro. Com um elegante tabuleiro em forma de meia lua circulava pelo salão antes e durante a projeção. Passou depois para seu irmão Arlindo que manteve a atividade por muito tempo. Fernando Moura também vendeu balas de coco que sua mãe fazia, embrulhava em papel manteiga e punha numa lata de biscoitos pintada por ele mesmo. Circulava pelo salão apresentando o produto: “bala de coco” o que lhe valeu o apelido pro resto da vida, batismo carinhoso de seus inúmeros clientes, o produto era de primeira qualidade. Bala continuava com seu grito de oferta mesmo durante a projeção, coisa que irritava os espectadores. Seu Duca teve que lançar um ultimato: ou vende calado ou está proibido de vender. Fernando continuou vendendo, seu último pregão acontecia antes do início do filme.
Norberto Magalhães instalou, na sala de espera, uma máquina de vender sorvete instantâneo. Foi uma novidade, mas durou pouco tempo, a tecnologia consumia muita energia, e o sorvete era caro para os padrões locais. O primeiro bombonier bem instalado foi do meu irmão, o Mou. Com aptidões comerciais precoces ele começou ao vender pirulitos ki bom, daí para mandar fazer um grande balcão e vender bombons e chocolates foi só um pulo. Em pouco tempo ele estava comprando grandes quantidades direto dos fornecedores e chegou até a construir um depósito para fazer estoque. Era muito rigoroso e não vendia fiado nem pros irmãos, o que nos levava a furtar uma vez ou outra um “Sonho de Valsa”, arma infalível para arranjar uma namorada na matinê.

O garoto Chico "Mou" Carneiro vendendo bombons no Cine Argus (foto: autor desconhecido) 
           
  Meu pai só não admitia venda de chicletes, curiosamente o produto mais procurado de todas as gerações. Ele detestava o uso dessa famosa goma de mascar. Achava nocivo à saúde e aos bons costumes. A borracha, depois de mastigada servia de molecagem para os incautos, pregavam nos assentos, na roupa dos outros e, com extrema maldade, nos cabelos; essa é a parte do mau costume. Quanto à nocividade, a OMS tem uma extensa lista dos malefícios, é só conferir.
Além das vendas em comum, os cinemas de cada cidade tinham sua particularidade, em Icoaraci era uma febre a venda de amendoim, com casca, o que nos obrigava a proibir a entrada dos vendedores no cinema, tamanha era a sujeira que ficava no salão. Na década de setenta, em Imperatriz-MA, o Cine Marabá abrigava quase uma centena de ambulantes em sua ampla calçada. Era incrível a variedade de vendas, desde panelada até milho assado, passando por picolés, geladinho de toda espécie e salgados em geral. Havia uma senhora, a dona Raimundinha, que sustentava nove filhos e o marido vendendo coxinha de galinha e refresco ao lado do cinema. Em Breves, até banca de jogo do bicho era armada em frente ao cinema, ao lado de um carrinho de hambúrguer com que o gerente complementava seu salário.  Assim eram os cinemas, um grandioso espaço que abrigava a tudo e a todos, em perfeita harmonia.
Aqui em Castanhal um dos últimos e famosos vendedores da porta do Argus foi o Nelson do Amendoim. Ele torrava Amendoim com chocolate e açúcar, vendia em saquinhos, tinha uma freguesia enorme. Depois vendeu para o seu Armindo, eu acabei comprando a engenhoca só para desocupar espaço.

Todos invariavelmente fizeram conosco grande amizade, amizade duradoura, quantos ainda hoje, que por lá passaram nos cumprimentam com muito respeito como quem diz: obrigado pelo espaço que nos deram. E nós em surdina, obrigado pelo espaço que ocuparam.
Dona Nila e Seu Duca no saguão de entrada do Cine Argus: geração de empregos diretos e indiretos (foto: autor desconhecido, 1971)

Nenhum comentário:

Postar um comentário