Empregos Indiretos
Por Amílcar Carneiro
Empresas e
governo se vangloriam de criar empregos indiretos sempre que querem valorizar
um projeto, mas combatem com veemência a informalidade. Se cada emprego direto
gera outros tantos indiretos, 80% destes serão informais. Que o diga a indústria
de reciclagem de lixo. O trabalho informal aparece onde existe movimento de
pessoas, gente trabalhando, se divertindo ou simplesmente passeando numa praça.
Repare uma nova construção, diariamente vários vendedores de lanches encostam
ali para vender seu produto, estão prestando um serviço que nem uma lanchonete
ou restaurante é capaz de fazer, levar o produto na hora e lugar certos por um
preço acessível ao bolso do operário. Grandes magazines e shopping têm seus
restaurantes e lanchonetes, mas, lá fora, há um batalhão de ambulantes
oferecendo produtos mais baratos e de grande atrativo popular. Mas, o que isso
tem a ver com cinema? Tudo.
O cinema
sempre foi um grande criador de atividades paralelas e informais. A realização
de um filme até sua exibição gera mais emprego do que outro produto de qualquer
indústria. Mas, quero me deter nas pessoas que tiveram suas vidas ligadas
indiretamente nos movimentos dos cinemas. Hoje, as salas requintadas englobam
todo o serviço extra como venda de balas pipocas e refrigerantes. Antes, pelo
menos no interior, os proprietários não se preocupavam muito com isso, ai
surgiam os vendedores de porta de cinema.
Da balinha ao
Gibi, passando pelo picolé, tudo era comercializado nas portas dos cinemas. No
cine Argus teve vendedores que faziam parte do funcionamento, chegavam antes de
todo mundo. Era o caso de Dona Zefinha, que vendia arroz doce em canecas de
leite moça e bolo de macaxeira. Dona Cecília vendia bolo de milho, mas só na
matinê de domingo. Alguns pasteleiros percorriam o salão com o tabuleiro a tira
colo mesmo durante a projeção. Outros, por economia, armavam o charão no
cavalete e vendiam lá na calçada.
Se o produto
era bom a turma vinha lá fora comprar e voltava correndo para não perder a
próxima cena. Era famoso o caracol do Seu (?) um precursor do Churros, um
canudo crocante e uma maçã de trigo dentro que fazia a alegria da meninada e
dos marmanjos também. Eu mesmo, quase adulto, ainda comi escondido na
bilheteria. Os irmãos Carvalho chegavam aos domingos com uma canjica tão requintada
que era servida em pratos de louça, talheres de metal, canela a gosto do
freguês. A procura era tanto que eles mal tinham tempo de armar o tabuleiro, a
demora em voltar pra casa ficava por conta da devolução dos pratos e talheres. O
Pontaria vendia uma cocada e um beijo de moça de dar água na boca em qualquer
um, sempre deixava algumas de cortesia ao dono do cinema. Havia um cidadão que
vendia sequilhos e biscoitos de goma no trem. Com a extinção da estrada de ferro,
ele passou a vender no cinema, depois sumiu. Ainda hoje eu tenho saudade do
sabor daquela goma adocicada.
O primeiro a vender balas e bombons variados
foi o Álvaro. Com um elegante tabuleiro em forma de meia lua circulava pelo salão
antes e durante a projeção. Passou depois para seu irmão Arlindo que manteve a
atividade por muito tempo. Fernando Moura também vendeu balas de coco que sua
mãe fazia, embrulhava em papel manteiga e punha numa lata de biscoitos pintada
por ele mesmo. Circulava pelo salão apresentando o produto: “bala de coco” o
que lhe valeu o apelido pro resto da vida, batismo carinhoso de seus inúmeros
clientes, o produto era de primeira qualidade. Bala continuava com seu grito de
oferta mesmo durante a projeção, coisa que irritava os espectadores. Seu Duca
teve que lançar um ultimato: ou vende calado ou está proibido de vender.
Fernando continuou vendendo, seu último pregão acontecia antes do início do
filme.
Norberto
Magalhães instalou, na sala de espera, uma máquina de vender sorvete
instantâneo. Foi uma novidade, mas durou pouco tempo, a tecnologia consumia
muita energia, e o sorvete era caro para os padrões locais. O primeiro
bombonier bem instalado foi do meu irmão, o Mou. Com aptidões comerciais
precoces ele começou ao vender pirulitos ki bom, daí para mandar fazer um
grande balcão e vender bombons e chocolates foi só um pulo. Em pouco tempo ele
estava comprando grandes quantidades direto dos fornecedores e chegou até a
construir um depósito para fazer estoque. Era muito rigoroso e não vendia fiado
nem pros irmãos, o que nos levava a furtar uma vez ou outra um “Sonho de Valsa”,
arma infalível para arranjar uma namorada na matinê.
O garoto Chico "Mou" Carneiro vendendo bombons no Cine Argus (foto: autor desconhecido)
Meu pai só não admitia venda de
chicletes, curiosamente o produto mais procurado de todas as gerações. Ele
detestava o uso dessa famosa goma de mascar. Achava nocivo à saúde e aos bons
costumes. A borracha, depois de mastigada servia de molecagem para os incautos,
pregavam nos assentos, na roupa dos outros e, com extrema maldade, nos cabelos;
essa é a parte do mau costume. Quanto à nocividade, a OMS tem uma extensa lista
dos malefícios, é só conferir.
Além das
vendas em comum, os cinemas de cada cidade tinham sua particularidade, em
Icoaraci era uma febre a venda de amendoim, com casca, o que nos obrigava a
proibir a entrada dos vendedores no cinema, tamanha era a sujeira que ficava no
salão. Na década de setenta, em Imperatriz-MA, o Cine Marabá abrigava quase uma
centena de ambulantes em sua ampla calçada. Era incrível a variedade de vendas,
desde panelada até milho assado, passando por picolés, geladinho de toda
espécie e salgados em
geral. Havia uma senhora, a dona Raimundinha, que sustentava
nove filhos e o marido vendendo coxinha de galinha e refresco ao lado do
cinema. Em Breves, até banca de jogo do bicho era armada em frente ao cinema, ao
lado de um carrinho de hambúrguer com que o gerente complementava seu salário. Assim eram os cinemas, um grandioso espaço que
abrigava a tudo e a todos, em perfeita harmonia.
Aqui em
Castanhal um dos últimos e famosos vendedores da porta do Argus foi o Nelson do
Amendoim. Ele torrava Amendoim com chocolate e açúcar, vendia em saquinhos,
tinha uma freguesia enorme. Depois vendeu para o seu Armindo, eu acabei
comprando a engenhoca só para desocupar espaço.
Todos
invariavelmente fizeram conosco grande amizade, amizade duradoura, quantos
ainda hoje, que por lá passaram nos cumprimentam com muito respeito como quem
diz: obrigado pelo espaço que nos deram. E nós em surdina, obrigado pelo espaço
que ocuparam.
Dona Nila e Seu Duca no saguão de entrada do Cine Argus: geração de empregos diretos e indiretos (foto: autor desconhecido, 1971)