terça-feira, 27 de setembro de 2016

Dona Nila, goma!

Seu Duca possuía muitas habilidades. O fundador do Cine Argus durante muito tempo produzia as placas com as quais fazia a propaganda dos filmes, abrindo letras com diferentes estilos e cores, conforme a película anunciada, com um cuidado artístico primoroso. Dona Nila Carneiro, sua fiel companheira, tinha importante participação nesse processo, preparando a goma de mandioca usada para colar os papeís, onde Seu Duca abria as letras, nas placas e cavaletes de madeira. Quem nos conta essa história é a professora Gilberta Carneiro Souto, filha mais nova do casal Duca e Nila.


D. Nila, goma!

Por Gilberta Carneiro Souto

Com essa frase, chegava o Sabá, de bicicleta, com uma lata de um galão de tinta vazia, solicitando que a d.Nila fizesse goma, matéria prima necessária à confecção de placas para anunciar o nome do filme que seria exibido no “cine Argus”.

Dona Nila

A goma, fécula da mandioca, tem, entre outras aplicações, essa função de cola, de grude, quando diluída e aquecida até o ponto de ebulição, formando um produto semelhante a uma gosma.  É dessa forma que é usado no tacacá, comida típica do Pará, que não se enquadra na categoria sopa e muito menos na categoria suco, essa tradicional beberagem é composta basicamente por quatro componentes que se combinam e se integram formando um alimento completo: tucupi, goma, camarão e jambu. O tucupi extraído também da mandioca, por prensagem, requer um repouso de 24h antes de ser fervido para consumo, a fim de eliminar os princípios tóxicos. Já a goma é obtida da mandioca triturada, lavada abundantemente e coada. A partir daí a fécula sedimenta, a água é retirada, obtendo-se a goma fresca, matéria prima para outras tantas iguarias da culinária local, dentre os quais a farinha de tapioca que faz uma   parceria famosa com o açaí e a tapioquinha, uma espécie de beiju, que aceita todos os tipos de recheio, e que atualmente , por seu baixo valor calórico, caiu no gosto popular sendo encontrada em todo o país.
Sebastião Lopes Guimarães é o nome do operador da antiga máquina de passar o filme. Pela manhã cuidava dos que fazeres rotineiros, entre os quais, colar uma folha de papel em branco, medindo cerca de 1,5m x 1,0m em uma base de madeira, onde, posteriormente seriam abertas as letras, indicando o nome do filme do dia, ou dos filmes, quando fosse dupla sessão. Figura bem conhecida de todos os espectadores que, quando a fita quebrava ou escurecia a projeção gritavam uníssonos, “ei Sabá!!!!! “ ou “Acorda Sabá!!!!”.  Emendar os rolos de filme um no outro e após a exibição “desemendar” era atividade especifica do Sabá. Trabalhou no cine Argus até à sua aposentadoria.
Sempre no meio da manhã, quando todas as bocas do fogão estavam ocupadas no preparo do almoço, chegava o Sabá dessa forma, lacônico: D. Nila, goma! Quase uma mensagem cifrada. Nem precisava dizer mais nada: D. Nila, ciosa da importância prioritária de tudo que se referia ao Cine Argus, num entrelaçamento familiar/profissional indissociável, colocava imediatamente a panela com água para ferver, tempo necessário para que a goma fosse produzida. E, despejada na lata antes vazia, era entregue sem mais delongas, concluindo o ritual que se repetia de semana em semana.
D. Nila, mulher de fibra, esposa do proprietário do cine Argus, mãe de 10 filhos, que cuidava da limpeza da casa, cozinhava e ainda arranjava tempo e disposição para fazer tachos de doce de goiaba, foi, pensando bem, uma fantástica companheira para o grande empreendedor, Manoel Carneiro Pinto Filho, e que com muita simplicidade  e de forma pragmática enfrentava todas as vicissitudes, até o início da década de 1980, quando de uma maneira abrupta, por assim dizer, seu Duca, como era chamado, nos deixou.  D. Nila nunca mais foi a mesma pessoa, situação que melhorou ironicamente com a chegada da demência senil, quando, de certa forma ela foi se beneficiando do esquecimento...
O Sabá, que sempre teve uma acurada sensibilidade musical, vive com seus familiares em meio as suas dezenas de discos. Vez por outra, passava para visitar D. Nila, agora sem pressa. E D. Nila, por sua vez, dispõe de todo o tempo do mundo, porém tem sido traída pela memória... Quem é mesmo este senhor??
Aos 96 anos de idade, d. Nila tem sido para todos nós, que com ela convivemos bem de perto, uma memória viva. E de formas variadas temos tido a oportunidade de ir resgatando todo esse manancial de informações, de registro, de esclarecimentos sobre este ou aquele caso; dirimindo duvidas e nos levando a refletir sobre esse privilégio ou incômodo de viver tanto.  E antes que ela pergunte, já vou dizendo:  sou a Gilberta, sua filha mais nova.

Dona Nila e Gilberta Carneiro Souto.

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