Seu Duca possuía muitas habilidades. O fundador do Cine Argus durante muito tempo produzia as placas com as quais fazia a propaganda dos filmes, abrindo letras com diferentes estilos e cores, conforme a película anunciada, com um cuidado artístico primoroso. Dona Nila Carneiro, sua fiel companheira, tinha importante participação nesse processo, preparando a goma de mandioca usada para colar os papeís, onde Seu Duca abria as letras, nas placas e cavaletes de madeira. Quem nos conta essa história é a professora Gilberta Carneiro Souto, filha mais nova do casal Duca e Nila.
D.
Nila, goma!
Por Gilberta Carneiro Souto
Com essa
frase, chegava o Sabá, de bicicleta, com uma lata de um galão de tinta vazia,
solicitando que a d.Nila fizesse goma, matéria prima necessária à confecção de
placas para anunciar o nome do filme que seria exibido no “cine Argus”.
Dona Nila
A goma, fécula
da mandioca, tem, entre outras aplicações, essa função de cola, de grude,
quando diluída e aquecida até o ponto de ebulição, formando um produto
semelhante a uma gosma. É dessa forma
que é usado no tacacá, comida típica
do Pará, que não se enquadra na categoria sopa e muito menos na categoria suco,
essa tradicional beberagem é composta basicamente por quatro componentes que se
combinam e se integram formando um alimento completo: tucupi, goma, camarão e jambu.
O tucupi extraído também da mandioca, por prensagem, requer um repouso de 24h
antes de ser fervido para consumo, a fim de eliminar os princípios tóxicos. Já
a goma é obtida da mandioca triturada, lavada abundantemente e coada. A partir
daí a fécula sedimenta, a água é retirada, obtendo-se a goma fresca, matéria
prima para outras tantas iguarias da culinária local, dentre os quais a farinha
de tapioca que faz uma parceria famosa com
o açaí e a tapioquinha, uma espécie de beiju, que aceita todos os tipos de
recheio, e que atualmente , por seu baixo valor calórico, caiu no gosto popular
sendo encontrada em todo o país.
Sebastião
Lopes Guimarães é o nome do operador da antiga máquina de passar o filme. Pela
manhã cuidava dos que fazeres rotineiros, entre os quais, colar uma folha de
papel em branco, medindo cerca de 1,5m x 1,0m em uma base de madeira, onde,
posteriormente seriam abertas as letras, indicando o nome do filme do dia, ou
dos filmes, quando fosse dupla sessão. Figura bem conhecida de todos os espectadores
que, quando a fita quebrava ou escurecia a projeção gritavam uníssonos, “ei Sabá!!!!! “ ou “Acorda Sabá!!!!”. Emendar
os rolos de filme um no outro e após a exibição “desemendar” era atividade
especifica do Sabá. Trabalhou no cine Argus até à sua aposentadoria.
Sempre no
meio da manhã, quando todas as bocas do fogão estavam ocupadas no preparo do
almoço, chegava o Sabá dessa forma, lacônico: D. Nila, goma! Quase uma mensagem
cifrada. Nem precisava dizer mais nada: D. Nila, ciosa da importância prioritária
de tudo que se referia ao Cine Argus, num entrelaçamento familiar/profissional
indissociável, colocava imediatamente a panela com água para ferver, tempo
necessário para que a goma fosse produzida. E, despejada na lata antes vazia,
era entregue sem mais delongas, concluindo o ritual que se repetia de semana em
semana.
D. Nila, mulher
de fibra, esposa do proprietário do cine Argus, mãe de 10 filhos, que cuidava
da limpeza da casa, cozinhava e ainda arranjava tempo e disposição para fazer
tachos de doce de goiaba, foi, pensando bem, uma fantástica companheira para o
grande empreendedor, Manoel Carneiro Pinto Filho, e que com muita
simplicidade e de forma pragmática
enfrentava todas as vicissitudes, até o início da década de 1980, quando de uma
maneira abrupta, por assim dizer, seu
Duca, como era chamado, nos deixou.
D. Nila nunca mais foi a mesma pessoa, situação que melhorou
ironicamente com a chegada da demência senil, quando, de certa forma ela foi se
beneficiando do esquecimento...
O Sabá,
que sempre teve uma acurada sensibilidade musical, vive com seus familiares em
meio as suas dezenas de discos. Vez por outra, passava para visitar D. Nila,
agora sem pressa. E D. Nila, por sua vez, dispõe de todo o tempo do mundo,
porém tem sido traída pela memória... Quem
é mesmo este senhor??
Aos 96 anos de idade, d.
Nila tem sido para todos nós, que com ela convivemos bem de perto, uma memória
viva. E de formas variadas temos tido a oportunidade de ir resgatando todo esse
manancial de informações, de registro, de esclarecimentos sobre este ou aquele
caso; dirimindo duvidas e nos levando a refletir sobre esse privilégio ou
incômodo de viver tanto. E antes que ela
pergunte, já vou dizendo: sou a Gilberta, sua filha mais nova.
Dona Nila e Gilberta Carneiro Souto.