Muita gente vai lacrimejar ao ler a crônica "O Dia Seguinte", de Amílcar Carneiro. Um dos motivos pelos quais o Cine Argus é lembrado com tanto carinho é pela força como marcou nossas infâncias. A participação do cinema de Seu Duca na vida dos castanhalenses ultrapassa os limites da sala de exibição e invadia a vida das pessoas, seja pelas influências dos filmes assistidos - principalmente nas brincadeiras - seja pela expectativa dos filmes seguintes. Como era gostoso esperar os filmes que entravam em cartaz! Como era bom imitar os heróis que amávamos ver no Cine Argus! Preparem seus lenços e relembrem das crianças que fomos, dos anos 40 aos 80. Uma das melhores crônicas de Amílcar Carneiro.
O DIA SEGUINTE
Por Amílcar Carneiro
No meu tempo
de infância tudo, ou quase tudo, o que se fazia ou comentava na cidade era em
função do cinema. Tal como a televisão e internet hoje, o que rolava ou ia
rolar no cinema era o assunto do dia, por onde se passava. Quando havia uma
grande estréia programada, era comum ouvir o rumor das pessoas, sobre o filme
que ia passar sobre os atores etc. Em sala de aula os colegas perguntavam se ia
haver aumento no preço do ingresso, prática comum em dias de grandes
espetáculos, os mais jovens se preocupavam com a censura do filme, alguns que
não saiam à noite queriam saber se iria passar em sessão vesperal, única
maneira de poderem assistir. Certa vez, uma conhecida nossa passou vendendo uns
frangos, naquele tempo ou se criava ou se comprava dos vizinhos, meu pai achou
bonitos os frangos e comprou dois, a senhora agradeceu e saiu dizendo: o
dinheiro do cinema eu já arranjei. O filme em cartaz era E O Vento Levou, velho
campeão de bilheteria. Alguns iam em nossa casa ver se vendíamos ingressos
antes da hora, era o medo de enfrentar filas ou perder lugar sentado. Muitos
assistiam em pé, sem reclamação.
Onde hoje em Castanhal existe a “invasão da
torre”, era a colônia chamada Ramal da Cachoeira e tivemos uma empregada que
morava lá. Ela contava que em dia de filme com Oscarito e Grande Otelo, outros
campeões de bilheteria, eles vinham cedo, a pé claro, vender alguma coisa,
frutas, macaxeira, frango e até porco. Dinheiro apurado, aguardavam a hora da sessão
fazendo lanche lá pelos arredores da estação, depois da projeção pegavam a
estrada (hoje Marechal Deodoro) chegando em casa altas horas da noite. No
caminho, para espantar a Matinta Pereira iam cantando as músicas do filme,
geralmente sucessos carnavalescos, abundantes nas chanchadas da Atlântida.
Mas, o melhor
da estréia dos grandes filmes era o dia seguinte quando nossas brincadeiras, no
quintal ou na rua, acompanhavam o gênero dos filmes. Se era capa e espada lá
íamos atrás de varas e ripas para fabricar espadas. Filme de Robin Hood? No outro
dia todo mundo de arco e flecha na mão. Pena de galinha para as flechas não era
problema, a corda do arco se fazia com embira de malva. Filme de Tarzan? Não
faltavam árvores no quintal pra fazer uma boa casa. Mas o grande campeão de
imitações era o filme de faroeste, todos queriam ser Roy Rogers, Gene Autry ou
Rocky Lane, eu gostava mais do Rex Allen, único cowboy que usava o revolver no
coldre com o cabo pra frente. Vassouras velhas eram valorizadas, viravam
cavalos, com sela, rédea e tudo mais que um alazão precisa para ser bem domado,
corríamos livres pelas ruas montando Triger, Ko-ko, Beleza Negra, Silver,
Tornado e outros cavalos famosos. Os colegas mais hábeis caprichavam nos revólveres
de madeira que atiravam bala de feijão. Eu nunca consegui um desses, os meus só
faziam barulho (onomatopaico) mas, com direito ao resvalo da bala nas pedras: -
Bááh..tiimm!
Havia dois
caras que eram exímios fabricantes de brinquedos, um era o Pontaria, cujo nome
de batismo eu nunca soube, o outro era o Chico Rocha que respondia pelo
indigesto apelido de Come Sapo. “Pontaria” perambulava pelo mercado sempre com
alguma novidade, hora uma impecável baladeira, hora uma carruagem feita de cofo
de caranguejo. Uma certa manhã, depois de um seriado do Zorro, Pontaria
apareceu com um chicote feito de fibra de malva (surrupiada na calçada da
PRIMOR), incrivelmente bem retorcida. O látego lhe deu tanta confiança que ele
assobiava imitando Zorro a chamar Tornado, seu cavalo, na verdade estava desafiando
o Corisco, carvoeiro famoso que também usava chicote, tinha um cavalo e um
pavor mórbido de assobio. Naquele dia, Pontaria foi nosso grande herói, só
faltou a máscara e a capa preta.
Por sua vez,
Come Sapo, tinha uma incrível queda para ser o bandido. Ele não se importava em
ser o mocinho, fazia questão de ser o vilão, era fã de Roy Bancroft, Jack
Pálance, Scoth Brady e Lohn Channey, vilões famosos de tantos faroestes.
Gostava de encarnar, também, Apaches e Comanches, os temíveis peles vermelhas e
sua fama de torturadores criada por Hollywood. Só não conseguiu ser Drácula,
nós tínhamos tanto medo que não dava para brincar de filme de vampiro. Mas isso
só nos sets de filmagem, na vida real
era um cara pacato como todos nós.
Isso tudo
passou. Hoje, a criançada vive grudada nos monitores de TV ou tela de
computadores vivendo suas fantasias em cenários cada vez mais sofisticados e
realistas criados pelos Super Nintendos da vida. Segura e confortavelmente instalados
em salas climatizadas, com o privilégio de ter o mundo nas mãos através da
Internet. Mas, desconhecem o prazer de ser perseguidos por um bando de pele vermelhas pelos quintais sem
fronteiras cavalgando firme um cabo de vassoura e gritando:
- Haiou Silver! Avante!
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