Não, não estamos falando de Debi & Lóide, a comédia estrelada por Jim
Carrey e Jeff Daniels que encerrou as exibições do Cine Argus em 1995. Estamos
falando do texto de Fátima Carneiro, socióloga filha de Seu Duca e uma das
personagens mais marcantes de O Cinema de Seu Duca, que escreveu essa crônica à
época do fechamento de nosso cinema. No texto, ela fala que não foi preparada
uma última sessão, de despedida ao Cine Argus, porque eles intencionavam
reabrir o cinema ou organizar uma derradeira sessão à altura de sua
importância.
Será
então que a última sessão do Cine Argus é a de hoje, 21 anos depois?
A ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA, QUE NÃO HOUVE.
Fátima Carneiro da Conceição (*)
Por falta de público, o Cine Teatro Argus, casa de exibição
cinematográfica em Castanhal, está fechando suas portas. Temporariamente, se
for possível adaptá-lo aos tempos das pequenas salas em galerias ou shopping centers. Ou definitivamente, se
isso não puder mais acontecer, pela situação crítica que vem imobilizando a
empresa nos últimos três anos.
A difícil situação onde estacionou
essa tradicional casa de espetáculos, que se confunde com a história da cidade
de Castanhal, compõe um quadro mais amplo de uma dura realidade, que se impõe,
antes mesmo de qualquer interpretação sobre as causas dessa crise. Há um cinema
fechando suas portas, com data marcada para isso, mas para as hipóteses que
expliquem esse declínio, há um debate que começou e não tem data para terminar.
Esse debate interpõe as mudanças da sociedade e o avanço tecnológico das
comunicações através de imagens, numa curiosa interação, que já é considerada a
marca de um novo tempo, ultrapassador das fronteiras do “moderno”. Desse avanço
tecnológico, aliás surgiu o próprio cinema, cedo considerada a Sétima Arte, pela sua importância.
O cinema como atividade inseriu-se
imediatamente no cotidiano das pessoas, nas sociedades modernas, de forma
profunda, porque é lazer e entretenimento, é cultura, em sentido amplo.
Atividade complexa que acompanha e intensifica o debate de ideias, a expressão
das emoções, o conceito de beleza, o deleite poético, a denúncia social e
política, a aventura e a ilusão, o cinema condensa e expressa todas as demais
formas artísticas, sobretudo, a meu ver, a música. Enquanto domínio
tecnológico o mundo do cinema não deixou
de evoluir desde o seu aparecimento, tendo se constituído no veículo que
permite a existência de um mundo próprio, voltado para a criação, o debate de ideias, a
formação de opiniões, a divulgação de novidades, o diálogo com as demais artes,
a definição de um campo de aproximação entre público de sociedades distintas, e
entre essas e os produtores, diretores, cinegrafistas, roteiristas, artistas,
críticos cinematográficos –uma infindável categoria de profissões e talentos,
atraídas pelo fantástico mundo do cinema.
Tornou-se assim, em pouco tempo, uma
dinâmica atividade econômica, intercambiando, na mesma motivação, como vasos
comunicantes, desde poderosas empresas até produtores independentes, articulando
um sem número de agentes dedicados a produzir, distribuir, exibir, divulgar e
comentar os filmes.
E é nesse setor, como atividade
econômica, que o cinema está em crise, principalmente no Brasil. Basta lembrar
os cinemas de Belém que fecharam: o Moderno, o Independência, o Cine Art, o
Guarani...O surgimento das novas salas de cinema – os Cinemas I, II e III, as
alas do Shopping Castanheira e do CENTUR – confirmam uma tendência: a de salas
pequenas, para públicos e programações diferenciadas. Para as salas dessa nova
tendência, o conforto e a segurança são tão importantes quanto a qualidade da
projeção e da programação. Essa tendência, muito clara no caso das grandes
cidades, principalmente as capitais, merece outras considerações, quando se
trata das médias e pequenas cidades do interior. Qual a real situação dos
cinemas no interior do Brasil? Quais os cinemas do interior que ainda
sobrevivem? Como tem sido a sobrevivência desses cinemas?
Os cinemas do interior paraense
estiveram sempre submetidos à contingência de precisarem ir muito distante, em
Recife, p.ex., para alugarem filmes e garantirem suas programações. E o custo
desse percurso para abastecimento de filmes foi sempre alto, devido ao preço do
transporte aéreo de cargas, do qual a atividade dependia. Alugar filmes para
cinemas do interior nunca foi de interesse da maior distribuidora atuante em
Belém, a Empresa Luís Severiano Ribeiro, o que transformou essa importante
fatia do mercado exibidor, os cinemas do interior, cativos das distribuidoras
de Recife, entre elas as principais multinacionais do ramo. Esse aspecto
comercial da atividade cinematográfica é frio e inflexível, sobretudo na hora
de contabilizar prejuízos, sem nada a ver com as ilusões, a magia e o
encantamento que um filme pode proporcionar.
Sob condições difíceis, só se pode
explicar o relativo sucesso dessas micro empresas, quando ele aconteceu, pelo
calor da presença habitual dos frequentadores de suas salas escuras. O público,
sempre presente e atento às programações, afagou e correspondeu carinhosamente
às iniciativas um tanto aventureiras dos que se arriscaram ao negócio de exibir
filmes e vender emoções. No caso do Cine
Argus, as marcas do pioneirismo e da paixão estavam lá, e o filme Cinema Paradiso, antologicamente,
mostrou essas marcas, numa demonstração soberba de como os acontecimentos de
uma pequena cidade do interior podem conter os elementos de um fenômeno
universal. Se os livros falam de outros livros, como diz o escritor Rubem
Fonseca, sabemos o quanto os filmes homenageiam o próprio cinema. Esse olhar
para si mesmo trai uma condescendência com a própria história, e a história do
cinema é muito rica.
Foi a ausência desse público, que
determinou o fechamento de cinemas e não o declínio da atividade cinematográfica
como produção, ou como expressão artística, ou como expressão do novo, ou
confirmação do cinema como um dos mais completos veículos de comunicação de
massa. O cinema reinventado foi ao encontro de seu público, em sua própria
casa, através da televisão, dos vídeos, da TV a cabo. Nem por isso perdeu seu
poder de comunicação e sua magia. Diante da tela, pequena ou grande, conforme a
preferência, haverá sempre alguém fascinado por aquela imagem em movimento, que
relata uma emoção.O cinema não está em crise, mas a exibição cinematográfica
adaptou-se a novos hábitos de lazer e às inovações tecnológicas.
E por que isso aconteceu? Não era
mais fascinante um espetáculo assistido em salas imensas, frequentemente
cheias, do que o filme intercalado com os intervalos de propaganda da TV? Enquanto
se alimenta essa discussão, com preferências e opiniões enriquecendo as
análises, os fatos continuam a se impor: antigos prédios de cinema
transformados em supermercados ou em templos religiosos, quando não estão
fechados, aguardando alguma destinação. O cine Argus, sem descaracterizar o seu
prédio, abrigará a Igreja Universal do Reino de Deus, em Castanhal. Até quando?
Como acreditamos, enquanto herdeiros
da empresa, na restauração e ressurgimento do Argus, em um feitio mais alinhado
com a tendência verificada nas grandes cidades, achamos que não houve a última
sessão de cinema. Poderá haver, então, dentro de dois anos, no mínimo, a
reabertura de uma casa pequena, o que, pela ousadia do empreendimento, merecerá
festa de inauguração. Por ora, pois, não haverá despedidas.
Nem poderia haver. Em homenagem a seu
fundador Manuel Carneiro Pinto Filho, a exibição cinematográfica do Cine Argus
não deve acabar assim. Foi esse entusiasta do cinema, meu pai,que, em sintonia
perfeita com seu tempo, captou o fugaz momento dessa atividade e a ela dedicou
suas energias, com paixão e entusiasmo. Seguindo os passos do cinema, começou
fazendo disso um hobby, em companhia de seu amigo Paulo Cavalcante, ensaiando a
exibição de filmes nos finais de semana. Era o tempo do cinema mudo, quando se
necessitava do trabalho de músicos, para criar, improvisadamente, o clima das
situações mostradas na tela. Com o crescente interesse, a atividade do fim de
semana passou a ser trabalho cotidiano, sustento da família. Em breve o espaço
do Cine Teatro Argus abrigava também bailes
de carnaval, reuniões políticas, palestras, eventos. Como bem mostrou a
competente reportagem de Rivan Jatenepara o Jornal Liberal, 1ª edição da TV
Liberal de 23.09.1995, decisões importantes para a vida do Município foram
tomadas naquele espaço, numa evidência da ligação do Cine Argus com a vida da cidade.
O Cine Argus tem, assim, sua história inscrita nos hábitos da cidade
e, durante várias gerações, compartilhou emoções e marcou etapas importantes na
vida das pessoas. Em seu palco foram exibidas muitas peças de teatro,
pastorinhas no Natal, pássaros e bois-bumbás durante a quadra junina, cantores
de todos os estilos, em várias épocas do ano. Na reconstituição do muito que se
apresentou em seus palcos, que certamente daria um belo documentário, um
capítulo especial precisa ser recuperado com carinho, o dos programas de
calouros, nas manhãs de domingo. Por toda essa gama de eventos apenas referidos
aqui, o papel desempenhado pelo Cine
Teatro Argus, na vida da cidade de Castanhal, estaria muito mais associado
a um centro cultural, pelo que representou para seus moradores, suas
lideranças, suas crianças e jovens. Por isso é mais que uma empresa que fecha
suas portas. É o testemunho de uma época, de uma sociedade, expressão do
dinamismo de uma cidade, que desaparecem.
Microempresa genuinamente local que
deu certo, o Cine Argus formou plateias e esteve atento ao seu público, o quando
pode. Disso se lembrará o público infantil de outrora, nas animadas sessões
vesperais; ou o público adulto e seleto da sessão de domingo à noite, com
exibição de dois bons filmes; bem mais raras, as sessões especiais com filmes
religiosos atendendo preferências do colégio local; a sessão das quarta feiras
com filmes japoneses, dirigidos àquela colônia, bastante expressiva em
Castanhal; e as sessões em que as mulheres tinham entrada grátis. A essa
diversidade de práticas, sempre adequando-se ao público de Castanhal, se
somaria, melancolicamente, a repetida exibição de filmes pornográficos, de
qualidade duvidosa. Era o sinal de crise das plateias, da ausência de público.
Não poderia mesmo haver, em tal
clima, a última sessão de cinema. Ela não faria jus aos grandes momentos
vividos pelo Cine Argus. Ou, quem
sabe, a última sessão de cinema já estava acontecendo e ninguém percebia. Teria
sido ela, talvez, uma das grandes bilheterias dos últimos tempos, como a série
de filmes com “Os Trapalhões”, ou alguma aventura televisiva, com efeitos
especiais? Ou os animados FarWest dos
anos anteriores, com torcida de plateia – adultos e crianças no mesmo compasso
– pela esperada vitória do mocinho? Quem sabe, a última sessão de cinema já
estava em andamento quando o Cine Argus exibiu,
galhardamente, “E o Vento levou”...segundo meu pai, “por honra da firma”, já
que o aluguel do filme ficou próximo do rendimento da bilheteria. O público de
Castanhal não poderia deixar de assistir, juntamente com os espectadores de
todo o país, o grande sucesso do cinema americano. O público, sempre o público,
ditou os procedimentos. E é a esse respeitável público que o cine Argus agora pede
licenças. Para fechar, temporariamente, as suas portas. Voltará a abri-las
quando sentir sinais de que o público assim o deseja.
Belém-PA, 05 de outubro de 1995.
(*) Este artigo foi publicado na coluna de Pedro Veriano, no jornal “A
Província do Pará, em outubro de 1995.