terça-feira, 16 de agosto de 2016

Os "Fecha Cinema"

E, encerrando a série de crônicas de Amílcar Carneiro, uma crônica sobre... encerramento. Ou sobre os "fecha cinemas", termo utilizado por Seu Duca para designar todos aqueles que, de alguma forma, contribuiam para o fracasso ou fechamento de uma sala comercial. Dá imaginar a repulsa do criador do Cine Argus pelo fechamento de uma sala de exibição.

Os "Fecha Cinema"
Por Amílcar Carneiro


Um termo muito usado pelo papai era: “fecha cinema”. Assim ele chamava tudo ou todos que, de alguma forma, contribuíam para que alguma coisa desse errado ou atrapalhasse a exibição de um filme, ou a freqüência de um cinema. Se um funcionário fizesse uma placa malfeita, ele era um fecha cinema e a placa, uma placa de fechar cinema. A lista de fatos e pessoas era longa. Propagandas mal feitas, títulos de filmes ou nomes de atores mal pronunciados simplesmente se transformavam em propaganda de fechar cinema ou pronúncia de fechar cinema.
Sabá, funcionário de Castanhal, era um projecionista de fechar cinema, tal era sua constância em deixar a tela escurecer ou desfocar ou, ainda, a fita ficar fora de quadro. Mário Sena, outro antigo projecionista, por sua vez, era um fecha cinema, mas na função de porteiro. Raimundo, apelidado de “Ri na Chuva” sobressaia-se  com esta qualidade negativa quando fazia propaganda volante.
Pouca gente escapava do olhar arguto e exigente do “seo” Carneiro. Grande parte de seus gerentes foram exímios “fecha cinemas” Até o velho Etelberg, fiscal do IBGE que se prostrava na porta em pose de derrotado, foi alvo do senso crítico e observador do papai, para quem a postura do inofensivo fiscal espantava a freguesia.
Até proprietários de cinemas eram agraciados com o codinome. E realmente fizeram jus a isso, pois não conseguiam manter seus cinemas funcionando por muito tempo, pela maneira errada como trabalhavam. O “seo” Vavá, de Santa Isabel, fechou e reabriu várias vezes o Cine Palace. O Rui, de Igarapé Açu, também vivia fechando as portas. Ribamar Rosa, de Bragança, Lourdes Bogéa, de Imperatriz, Walter Banhos, de Macapá e Renato Furtado, de Breves. Todos esses fizeram jus à profética frase do papai: “aquele não  vai agüentar muito tempo, é um fecha cinema”.
Mas o grande “fecha cinema “ da história chamou-se EMBRAFILME. A estatal criada, supostamente, para defender os interesses da produção cinematográfica nacional, criou normas e leis que só atrapalhavam os exibidores. A Lei de Proteção ao Cinema Nacional poderia muito bem se chamar Lei de Perseguição aos Exibidores. Essa lei obrigava os cinemas a exibir filmes de curta metragem em todas as sessões antes do filme principal. Eram filmes de baixa qualidade que espantavam o público dos cinemas. Quando esses filmes começavam, depois do cine-jornal, muitas pessoas se levantavam e iam para a sala de espera. Os que ficavam no salão vaiavam, alguns esperavam do lado de fora e só compravam o ingresso quando o curta-metragem terminava.
Outra lei que deu muita dor de cabeça a exibidores de todo o Brasil foi a lei de Obrigatoriedade do Filme Nacional. Os cinemas eram obrigados a exibir filmes brasileiros em 28 dias por cada trimestre de exibição. Se o filme fosse de grande bilheteria (como era o caso dos filmes dos Trapalhões) só eram contados dez dias, mesmo que o filme, por exemplo, ficasse em cartaz por três ou quatro semanas. Este controle era feito por meio de mapas que o exibidor tinha que mandar a cada três meses, para a Embrafilme.
No ano de 1974, o Cine Independência, em Belém, já quase fechando as portas, amargou nos últimos três meses do ano exibição diária de filmes brasileiros sem um espectador sequer para assistir as sucessivas “bombas” que foram apresentadas.
O mesmo aconteceu com os cinemas Ópera e Moderno. O Ópera conseguiu sobreviver transformando-se em cinema pornô. O Moderno fechou junto com o Independência e ambos pertenciam aos irmãos Cardoso, antigos exibidores de Belém (que fundaram a distribuidora Cardoso & Lopes) que, assim, saíram do ramo.
A Embrafilme mantinha também escritórios de distribuição de filmes. A lista de seus filmes disponíveis era imensa, quase todos de péssima bilheteria e o exibidor era obrigado a digerir tudo. Na grande maioria das vezes, pagava-se o aluguel mas não se exibia o filme, pois assim o prejuízo seria menor.
Outro problema eram os ingressos padronizados. Caríssimos, pois eram cobrados sobre o valor de venda ao público e não podiam ser reaproveitados, tinham que ser rasgados no momento em que eram recebidos do espectador. Mas as reutilizações eram inevitáveis e ai surgia novo problema. Os fiscais da Embrafilme chegavam sempre na surdina e com ameaças: “vamos fechar esse cinema” , “vamos acabar com essa empresa só em multas”  e outros tipos de ameaça. O próprio presidente da Embrafilme, Roberto Farias, disse a seguinte frase: “a raça mais safada do Brasil é o exibidor”.
Certa vez, no escritório da Embrafilme em Belém, o chefe dos fiscais, de sobrenome Conde, exibia orgulhoso uma série de autos de infração feitos por ele no Cine Ipiranga, de Icoaraci. As irregularidades apontadas eram as seguintes: rodízio de ingresso, exibição de trailer de censura 18 anos antes de um filme de censura 10 anos; falta de exibição do curta metragem e finalmente a exibição de um trailer que não constava da programação previamente liberada pela Embrafilme. Tudo isso com multa dobrada por serem infrações reincidentes, segundo o fiscal. Para encerrar, ele me falou com grande orgulho: “dessa vez eu fecho aquele cinema, tenho fé em Deus”.
Mas a Embrafilme também fechou. No inicio dos anos 90, seu escritório de Belém funcionava precariamente no sótão de um prédio público onde, por muito tempo, funcionou a Escola Técnica e depois a Delegacia do MEC. Lá estive pela última vez a chamado do último funcionário que ainda estava por lá, só aguardando ordens para o fechamento definitivo. Ele era de Belo Horizonte e ia ser remanejado para algum outro órgão federal em Minas Gerais. Me ofereceu várias cópias de filmes que haviam sido apreendidos e, também, algum material de escritório. Pouca coisa me servia e nem os filmes interessavam mais. Numa conversa rápida ele falou que estava em dificuldades financeiras, confessando-se arrependido de ter prejudicado e até fechado tantos cinemas, inclusive alguns do nosso circuito. Pediu dinheiro emprestado e mil desculpas. Eu lhe arranjei o dinheiro e nos despedimos. A Embrafilme logo encerrou de vez suas atividades. Alguns anos depois eu segui o mesmo caminho.
Cine Argus na década de 90. Em exibição "Os Cavaleiros do Zoodíaco", semanas antes do fechamento do cinema (foto: autor desconhecido).

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