E, encerrando a série de crônicas de Amílcar Carneiro, uma crônica sobre... encerramento. Ou sobre os "fecha cinemas", termo utilizado por Seu Duca para designar todos aqueles que, de alguma forma, contribuiam para o fracasso ou fechamento de uma sala comercial. Dá imaginar a repulsa do criador do Cine Argus pelo fechamento de uma sala de exibição.
Os "Fecha Cinema"
Por Amílcar Carneiro
Um termo muito usado pelo papai era: “fecha cinema”. Assim ele chamava
tudo ou todos que, de alguma forma, contribuíam para que alguma coisa desse
errado ou atrapalhasse a exibição de um filme, ou a freqüência de um cinema. Se
um funcionário fizesse uma placa malfeita, ele era um fecha cinema e a placa,
uma placa de fechar cinema. A lista de fatos e pessoas era longa. Propagandas
mal feitas, títulos de filmes ou nomes de atores mal pronunciados simplesmente
se transformavam em propaganda de fechar cinema ou pronúncia de fechar cinema.
Sabá, funcionário de Castanhal, era um projecionista de fechar cinema,
tal era sua constância em deixar a tela escurecer ou desfocar ou, ainda, a fita
ficar fora de quadro. Mário Sena, outro antigo projecionista, por sua vez, era
um fecha cinema, mas na função de porteiro. Raimundo, apelidado de “Ri na Chuva”
sobressaia-se com esta qualidade
negativa quando fazia propaganda volante.
Pouca gente escapava do olhar arguto e exigente do “seo” Carneiro. Grande
parte de seus gerentes foram exímios “fecha cinemas” Até o velho Etelberg,
fiscal do IBGE que se prostrava na porta em pose de derrotado, foi alvo do
senso crítico e observador do papai, para quem a postura do inofensivo fiscal
espantava a freguesia.
Até proprietários de cinemas eram agraciados com o codinome. E realmente
fizeram jus a isso, pois não conseguiam manter seus cinemas funcionando por
muito tempo, pela maneira errada como trabalhavam. O “seo” Vavá, de Santa
Isabel, fechou e reabriu várias vezes o Cine Palace. O Rui, de Igarapé Açu,
também vivia fechando as portas. Ribamar Rosa, de Bragança, Lourdes Bogéa, de
Imperatriz, Walter Banhos, de Macapá e Renato Furtado, de Breves. Todos esses
fizeram jus à profética frase do papai: “aquele não vai agüentar muito tempo, é um fecha cinema”.
Mas o grande “fecha cinema “ da história chamou-se EMBRAFILME. A estatal
criada, supostamente, para defender os interesses da produção cinematográfica
nacional, criou normas e leis que só atrapalhavam os exibidores. A Lei de
Proteção ao Cinema Nacional poderia muito bem se chamar Lei de Perseguição aos
Exibidores. Essa lei obrigava os cinemas a exibir filmes de curta metragem em
todas as sessões antes do filme principal. Eram filmes de baixa qualidade que
espantavam o público dos cinemas. Quando esses filmes começavam, depois do
cine-jornal, muitas pessoas se levantavam e iam para a sala de espera. Os que
ficavam no salão vaiavam, alguns esperavam do lado de fora e só compravam o
ingresso quando o curta-metragem terminava.
Outra lei que deu muita dor de cabeça a exibidores de todo o Brasil foi a
lei de Obrigatoriedade do Filme Nacional. Os cinemas eram obrigados a exibir
filmes brasileiros em 28 dias por cada trimestre de exibição. Se o filme fosse
de grande bilheteria (como era o caso dos filmes dos Trapalhões) só eram
contados dez dias, mesmo que o filme, por exemplo, ficasse em cartaz por três
ou quatro semanas. Este controle era feito por meio de mapas que o exibidor
tinha que mandar a cada três meses, para a Embrafilme.
No ano de 1974, o Cine Independência, em Belém, já quase fechando as
portas, amargou nos últimos três meses do ano exibição diária de filmes
brasileiros sem um espectador sequer para assistir as sucessivas “bombas” que
foram apresentadas.
O mesmo aconteceu com os cinemas Ópera e Moderno. O Ópera conseguiu
sobreviver transformando-se em cinema pornô. O Moderno fechou junto com o
Independência e ambos pertenciam aos irmãos Cardoso, antigos exibidores de
Belém (que fundaram a distribuidora Cardoso & Lopes) que, assim, saíram do
ramo.
A Embrafilme mantinha também escritórios de distribuição de filmes. A
lista de seus filmes disponíveis era imensa, quase todos de péssima bilheteria
e o exibidor era obrigado a digerir tudo. Na grande maioria das vezes,
pagava-se o aluguel mas não se exibia o filme, pois assim o prejuízo seria
menor.
Outro problema eram os ingressos padronizados. Caríssimos, pois eram
cobrados sobre o valor de venda ao público e não podiam ser reaproveitados,
tinham que ser rasgados no momento em que eram recebidos do espectador. Mas as
reutilizações eram inevitáveis e ai surgia novo problema. Os fiscais da
Embrafilme chegavam sempre na surdina e com ameaças: “vamos fechar esse cinema”
, “vamos acabar com essa empresa só em multas”
e outros tipos de ameaça. O próprio presidente da Embrafilme, Roberto
Farias, disse a seguinte frase: “a raça mais safada do Brasil é o exibidor”.
Certa vez, no escritório da Embrafilme em Belém, o chefe dos fiscais, de
sobrenome Conde, exibia orgulhoso uma série de autos de infração feitos por ele
no Cine Ipiranga, de Icoaraci. As irregularidades apontadas eram as seguintes:
rodízio de ingresso, exibição de trailer de censura 18 anos antes de um filme
de censura 10 anos; falta de exibição do curta metragem e finalmente a exibição
de um trailer que não constava da programação previamente liberada pela
Embrafilme. Tudo isso com multa dobrada por serem infrações reincidentes,
segundo o fiscal. Para encerrar, ele me falou com grande orgulho: “dessa vez eu
fecho aquele cinema, tenho fé em Deus”.
Mas a Embrafilme também fechou. No inicio dos anos 90, seu escritório de
Belém funcionava precariamente no sótão de um prédio público onde, por muito
tempo, funcionou a Escola Técnica e depois a Delegacia do MEC. Lá estive pela
última vez a chamado do último funcionário que ainda estava por lá, só
aguardando ordens para o fechamento definitivo. Ele era de Belo Horizonte e ia
ser remanejado para algum outro órgão federal em Minas Gerais. Me ofereceu
várias cópias de filmes que haviam sido apreendidos e, também, algum material
de escritório. Pouca coisa me servia e nem os filmes interessavam mais. Numa
conversa rápida ele falou que estava em dificuldades financeiras,
confessando-se arrependido de ter prejudicado e até fechado tantos cinemas,
inclusive alguns do nosso circuito. Pediu dinheiro emprestado e mil desculpas.
Eu lhe arranjei o dinheiro e nos despedimos. A Embrafilme logo encerrou de vez
suas atividades. Alguns anos depois eu segui o mesmo caminho.
Cine Argus na década de 90. Em exibição "Os Cavaleiros do Zoodíaco", semanas antes do fechamento do cinema (foto: autor desconhecido).